quinta-feira, 20 de junho de 2019

Selvagem

Há uns dias atrás, uma amiga minha perguntou-me: Gonçalo, por que é que não mandas as tuas crónicas para uma revista?

A resposta foi imediata e taxativa: porque quero manter-me selvagem!

Sim, selvagem. Como um felino à solta. Afinal, qual é a beleza de um gato de apartamento? Aquela ronronante lassidão encanta, mas é enfadonha ao pé dos olhos aguçados e orelhas em riste do predador que mira a presa acabada de pousar no relvado.

O felino selvagem faz as suas regras. Quando se escreve para um órgão público, somos inevitavelmente sujeitos ao escrutínio, que pode mesmo chegar a roçar uma moderna forma de censura, apelidado de “processo de revisão”. Ora, o único lápis azul que quero ver a riscar o que escrevo é o lápis do tempo. Do meu tempo! O lápis daquele distanciador lapso temporal a que Fernando Pessoa um dia chamou “intelectualização” e que é capaz de transformar a maior das criações na mais banal das redações.

Criações... redações. Sim, às vezes faço desta espécie de rima. Aceito a crítica. Por vezes, caio na teia dos jogos de palavras, nessa forma tão rendilhada de tudo escrever e nada dizer. Escrever... dizer. Nisso sou como o pior dos cegos e vou continuar a querer não ver, porque às vezes escrever é simplesmente fazer sexo com as palavras em cima da mesa do escritório. A tarde toda!

É verdade, toda esta silenciosa algazarra contrasta com o meu restante percurso de vida. Se há inteligência no que alcancei (já nem me lembro bem...) foi a de reconhecer que teria de trabalhar a dobrar para lá chegar. E uma vez reformado dessa vida e com outra constantemente solicitando algum desse saudoso empenho, para quê juntar mais uma obrigação quando simplesmente se pode cultivar uma paixão? É que também existe beleza no futebol de rua e no jovem talento que nunca passou disso mesmo.

Há quem diga que os escritores possuem uma imensurável riqueza de vida interior, quase sempre exponencialmente maior que a mundana existência que os olhares que se cruzam consigo lhe conhecem. A inquietude é típica. Ser assolado por uma ideia, um pensamento, uma frase, um conjunto de palavras quando se tenta adormecer... e ser obrigado a levantar da cama e escrever... escrever, escrever e escrever até a ideia ficar gravada, a maturar, enquanto o corpo do seu mensageiro finalmente pode repousar. É verdade: não há tarefa, obrigação ou prazo que possam fazer parar a força rasgante de um desatino, aquela necessidade de enjaular uma ideia, de atirar com toda a força o livro ao chão para matar o pensamento serpenteante.

É precisamente essa selvageria desconcertante que me faz continuar a escrever, até porque tenho que confessar: nunca tive grande jeito para sorrir nem para correr feiras em beijos e abraços. Escrever uma crónica é fazer entrar em ebulição o sangue que circula no corpo, derreter um coração que vive congelado num rosto fechado e, assim morrer esvaído em palavras derramadas numa folha de papel. É renascer e voltar a morrer. Vezes e vezes sem conta. Tão selvagem quanto isso!

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Quem quer ser Diego Simeone?

Diego Pablo Simeone. Jogador de sucesso. Treinador de sucesso. Duro no campo, carismático no banco. É o único treinador cujo nome tenho estampado numa camisola de futebol. É o homem que pegou no Atlético de Madrid a meio da temporada 2011/2012 e o revitalizou, guiando os “Colchoneros” a 2 finais da Liga dos Campeões, a 2 vitórias na Liga Europa e a uma inesperada conquista na Liga Espanhola. Sob a batuta de “El Cholo” Simeone, o segundo maior clube da capital espanhola voltou a fazer-se ouvir bem alto no panorama do futebol mundial.

Vozes, muitas vozes pelas ruas, rádios e televisores é o que mais se tem ouvido em Portugal nos últimos meses, rugindo dos megafones empunhados nos protestos dos mais variados setores profissionais. Professores, enfermeiros, taxistas, condutores de matérias perigosas... Quase todos estes protestos são manifestações sindicais, o que não só demonstra a força aglutinadora deste tipo de agremiações como sinaliza bem o final de ciclo legislativo. Os líderes sindicais acreditam que o período pré-eleitoral consubstancia o cenário ideal para o sucesso das suas reivindicações.

O sucesso de Diego Simeone está também ele muito ligado a um determinado tipo de circunstância. Quando chega a Madrid, o Atlético não era um clube de 1.ª linha, nem em Espanha nem na Europa. Em 2000 desce de divisão e depois de muitos anos negros, em 2011 era ainda um clube que se batia com bastante dificuldade com Real Madrid e Barcelona, que dividiam entre si o protagonismo interno nas últimas duas décadas. Ora, é sobre esta base pouco amistosa que o treinador argentino constrói o êxito da sua equipa: semeia um espírito de revolta, une as tropas e colhe o fruto que nenhum adepto madrileno esperava provar tão cedo: o título espanhol de 2013/2014 (ainda por cima celebrado em Camp Nou!).

Ora, eu não creio que Simeone tivesse este êxito em clubes “novos ricos” como Chelsea, Paris-Saint Germain ou Manchester City. E nem acredito que os médicos fossem tão bem-sucedidos como os Enfermeiros foram se convocassem uma greve geral tão prolongada como foi a famosa Greve Cirúrgica que paralisou blocos operatórios por este país fora.

Porquê? Porque historicamente os médicos foram um grupo bastante favorecido no seio da sociedade portuguesa. Se atualmente ainda assim é, é muito discutível... No entanto, esta cultura dinossáurica de barriga cheia teima em desunir muitos médicos nas questões de fundo do seu setor. “Desde que não me chateiem e eu continue a ganhar o meu, tudo bem”, é este o pensamento de alguns colegas meus. Como tal, juntar os médicos num megaprotesto como aquele conduzido pelos Enfermeiros parece-me, na atualidade, surreal!

Difícil de imaginar também é Diego Simeone noutro clube que não o Atlético. Milan, Inter, Arsenal... Se é indesmentível que são clubes que têm andado arredados das grandes conquistas, também indiscutível é que são instituições historicamente ricas e tituladas... Falta-lhes aquela sede... Assim de repente, só o imagino mesmo ao comando do... Nápoles. Sim, o Nápoles. Os underdogs do Sul de Itália que o outro Diego, Maradona, astro maior do futebol argentino e mundial, um dia levou a roubar a glória aos grandes do Norte transalpino. Tal como o Atlético de Madrid, no início do século, os napolitanos desceram igualmente de divisão afundados em dívidas, mas renasceram e, na última década, até têm sido os que mais têm mordido os calcanhares à super Juventus. No entanto, ao contrário das grandes cidades do Norte italiano, Nápoles não é exatamente uma cidade postal e a pobreza a que está votada tem feito do futebol a grande sublimação da população. Portanto, parece-me que aqui estão reunidas as condições para Simeone fazer aquilo que melhor sabe fazer.

Certamente que este não é apenas um texto sobre o desporto-rei. Não. Esta é uma reflexão em tempo de eleições. Esta é uma crónica sobre os audazes que juntam multidões. Esta é uma crónica sobre os afortunados que semeiam ódios e paixões. Desde Martin Luther King a Nigel Farage, desde a razão à ilusão, desde os de sempre aos de nunca, não restem dúvidas: para alterar o panorama político, para agitar as águas congeladas, é premente encontrar o grande líder que derreta o marasmo e o esprema no suco que mate a sede de vitória!