quarta-feira, 27 de outubro de 2021

10 anos de Faculdade: a primeira aula de Anatomia

26 setembro 2011. Este foi o dia em que entrei para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. O tempo passa e já lá vão 10 longos e incrivelmente curtos anos desde esse magnífico dia. Curiosamente, essa segunda-feira foi também o dia em que tive o exame de condução de veículos ligeiros, pelo que comecei logo a Faculdade a... “baldar-me”!
 

No dia seguinte era terça-feira. E terças-feiras no 1.º ano de Medicina em Coimbra significavam aula de Anatomia às 8h no Pólo 1, onde se encontra erguida a sempre imponente, mas agora antiga Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Recordo-me perfeitamente de sair do carro do meu tio Alberto, que nesse dia me deu a primeira de muitas e muitas boleias (MUITO OBRIGADO!), e de me deparar, junto à lateral da Faculdade de Medicina que dá para a rotunda de D. Dinis, com um coro entoando os cânticos de ordem cujos maestros de preto lhes incumbiam de bradar aos céus ainda meio adormecidos. Parecia que estavam à minha espera. É que aquela tremenda mancha amarela, ladeada pelo negro das capas e batinas, depressa desmobilizou rumo ao extremo oposto da frente da faculdade onde iniciaria a escalada rumo ao piso 3, o piso do Instituto de Anatomia Normal da Faculdade de Medicina de Coimbra. Escusado será dizer que, este jovem provindo de Penacova, estava um pouco amedrontado. E isto é um eufemismo! É que, graças à “balda” do primeiro dia eu tinha conseguido duas coisas: uma, a carta de condução, e duas, não ter a famosa t-shirtamarela do caloiro de Medicina. Recordo-me que aquela terça-feira amanhecera algo fria, por isso a t-shirt branca com motivos pretos e vermelhos ao estilo rock band que vesti estava nessa hora revestida por uma bela sweat de cor... azul. Sim. A primeira vez que entrei numa aula de Medicina, todos os caloiros estavam de amarelo e eu... de azul. Como é óbvio, as perguntas logo choveram no habitual tom simpático e afável que sempre caracteriza os Doutores de segundo ano sedentos da “vingança” pelas tormentas sofridas no iato transato.

 

Caloiro! Por que é que não tem a camisola de caloiro?

 

E eu a subir as escadas da faculdade lá ia explicando que tinha faltado no dia anterior para fazer o exame de condução.

 

Ao menos passou no exame?

 

Sim. Lá ia respondendo.

 

Bem, chegados ao piso 3 atravessamos todo o corredor rumo à ponta oposta onde cortámos à esquerda e finalmente entramos no corredor que desembocava no famoso anfiteatro de Anatomia Normal. Ao entrar pela porta traseira, vislumbrei aquilo que ainda hoje considero com um verdadeiro santuário do ensino Médico em Portugal. Com tudo o que de bom e de mau lá se passou ao longo dos anos. Mas uma coisa é certa, poucas cadeiras tão desconfortáveis como aquelas terão formado tantos médicos como as daquele sagrado templo que as horas intermináveis lá passadas a receber lições à antiga ainda hoje me trazem saudades.

 

Quis o destino que me sentasse na primeira fila, à esquerda, junto às janelas. Naquele banco corrido haveria ainda de me sentar em mais duas ocasiões: em janeiro e em julho de 2012 para os exames orais das cadeiras de Anatomia 1 e 2.

 

E depois de todos os caloiros estarem sentados, ladeados pelos Doutores de negro, eis que chegava o momento do Exmo. Sr. Professor António Bernardes se levantar no alto do seu altar, nos cumprimentar, dar as boas vindas e iniciar a primeira aula de Anatomia.

 

Não sei se existe gravação de alguma destas primeiras aulas por aí perdida. Só quem lá esteve pode dizer o tremendo ambiente que lá se vivia naquela efeméride anual. Era tradição. Era legado. Era magia. Era mística! Toda a mística do curso de Medicina residia naquela cadeira de Anatomia, A Matemática dos Médicos. E nesta primeira aula, o Professor Bernardes transmitia com a ajuda do coro de Doutores esta mesma mística sagrada aos imberbes que agora iniciavam a viagem de uma vida. É que, segundo o Professor Bernardes, Deus havia criado a mulher para melindrar o homem, mas como tal não surtira efeito, então Deus fez a derradeira criação para atormentar para todo o sempre o pobre detentor dos cromossomas X e Y: a Anatomia!

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Vícios Pandémicos

Quando a Pandemia Covid-19 obrigou grande parte da população mundial a suspender as suas vidas e refugiar-se em casa, muitos foram os que aproveitaram a forçada clausura para dar largas às paixões que o exigente calendário do dia a dia tantas vezes não permite cultivar. Outros, inclusive, aventuraram-se por terrenos desconhecidos e até houve quem desse uma volta de 180º à sua rotina e partisse para um novo ofício, mais bem-adaptado ao “novo normal”.

Estou-me a referir tanto àqueles que retomaram a pintura, como aos que começaram a fazer pão, e aos corajosos que trocaram o emprego condenado ao fracasso pelo vírus pelos novos mundos das profissões digitais.

 

Fruto da minha profissão, não pude ficar em casa. E como tal, não, não foi no lockdown 2020 que finalmente escrevi o tal livro (um dia hei de cumprir essa ambição!). O meu vício pandémico foi mais ocioso. E também não, não subscrevi a Netflix. Confesso que a maioria das séries não me atrai. Sou mais de filmes. Em 2 horas está visto. Contudo, não sei o que me deu, mas decidi voltar à pré-adolescência, e voltar a ver wrestling em força.

 

Sim, leram bem: o meu vício pandémico foi o wrestling! Passada uma semana após o encerramento geral subscrevi o WWE Network para voltar ao vício dos velhos tempos. A WWE Network é a plataforma de streamingda maior organização de luta livre mundial. A Netflix do wrestling, portanto. Esta enorme base de dados contem, não só todos os principais eventos que decorrem durante o ano, como também vídeos que remontam aos anos 70 do século passado. Um autêntico santuário de conhecimento para os apaixonados por esta tão polémica e controversa forma de desporto/“entretenimento desportivo”, que no nosso país viu o seu expoente máximo de popularidade ser atingido entre 2005 e 2008. Nessa altura bem me lembro de ler o livro "Bem-vindo ao Mundo do Wrestling", no qual o locutor da Rádio Comercial, Diogo Beja, confessava que a sua paixão de menino pela luta livre também tinha estado hibernada durante muitos anos...

 

Se ainda hoje, ano e meio volvido desde o começar deste período tão singular das nossas vidas, o vírus não para de encher os noticiários, então recordem-se do que era o nosso dia a dia nos primórdios da pandemia. É que já me não chegava o Covid todo o dia no trabalho, era só o que mais faltava ter de continuar a levar com o vírus também em casa através do ecrã de uma televisão que me vi forçado a ver longe da família durante quase 2 meses! Assim, dia após dia, privado da beleza “escarpante” dos montes e vales da minha terra, Penacova, confesso que me fartei. E então, nos ecrãs do meu televisor e computador, onde outrora o noticiário era rei, passou apenas a dar wrestling. Foram torradas com wrestling, foi bife de perú com wrestling, foi bacalhau com wrestling! Sempre que podia, digitava “wwe network” no Google e lá escapava eu para esses tempos de menino há muito idos. E mais, pude finalmente viver o aparecimento dos grandes lutadores que eu já conheci maduros. Vi o errático Rocky Maiviatransformar-se no carismático Dwayne The Rock Johnson. Vi o insosso Ringmaster evoluir para o icónico Stone Cold Steve Austin. Vi todo o ano de 1997 da WWE, o ano da metamorfose que trouxe o wrestlingdo passado para o modelo que conheci no final de 2005, quando, ainda um miúdo de 12 anos, decidi pela primeira vez sintonizar na SIC Radical para ver Jonh Cena, Shawn Michaels, Triple H e Kurt Angle no Monday Night Raw.

 

Enfim, revivi muitas coisas e sobretudo descobri outras mais. E se, durante uma década a paixão pelo wrestling esteve, sem dúvida, adormecida no desinteresse em que esse espetáculo para mim se havia transformado, a verdade é que, ao subscrever a biblioteca digital da WWE, pude voltar a ser feliz ao apreciar com outra maturidade esta magnífica forma de desporto/”entretenimento desportivo”.


Cada um teve o seu vício pandémico. O meu not guilty pleasure foi o wrestlingQual foi o vosso?

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Os 5 Violinos e a Demência

Senhor António, recorda-se daquelas 3 palavrinhas que lhe pedimos para decorar há uns minutos atrás?

Infelizmente, as consultas dos Médicos de Família, Neurologistas e Fisiatras estão repletas de pessoas que, ainda bastante autónomas, já não conseguem recordar estas tais 3 palavrinhas mágicas, um pequeno indiciador de uma demência em início.

Como assim, perda de memória!? Senhor Doutor, olhe que ele ainda sabe os Reis de Portugal todos de trás para a frente!

Pois, nós bem sabemos que o senhor António ainda sabe isso tudo. Algo que sempre fascina quem se senta do outro lado da secretária é a forma como a demência tende a afetar primeiramente as memórias mais recentes, preservando as mais antigas. É bastante comum encontrarmos pessoas que não conseguem recordar o que tomaram ao pequeno-almoço, mas ainda sabem os pratos de carne e de peixe que almoçaram 30 anos antes, no dia do casamento do seu filho.

Na verdade, esta é uma das características mais marcantes da demência, um nevoeiro que se vai lentamente adensando, escondendo memórias e fazendo regressar aos poucos à infância, até ao ponto em que olhamos para a nossa neta adulta e lhe chamamos “mãe”.

No outro dia, apanhei um doente assim na consulta. Calhou em conversa descobrirmos a paixão em comum pela grande potência desportiva chamada Sporting Clube de Portugal. Mal eu disse que também era do Sporting (ainda por cima sócio e tudo!), o senhor lança-me uma pergunta fatal: Se o Doutor é mesmo sportinguista, tem de me dizer os nomes do 5 Violinos! O meu rosto de aluno a quem se lhe acaba de dar uma branca em pleno exame oral foi oportunamente disfarçado pela máscara (o jeito que ela dá para quem facilmente cora de vergonha!), mas o bloqueio não passou. Na breve fração de segundos que mediou a pergunta à minha incompleta resposta, apenas consegui viajar à inauguração do Estádio José de Alvalade XXI, na qual o único dos Violinos ainda vivo à época deu o pontapé de saída simbólico do jogo ante o Manchester United. Jesus Correia. Foi o primeiro nome que me saiu. Ainda consegui dizer Travassos. Mas os outros 3 vultos em posição agachada para sempre imortalizados na icónica fotografia dos 5 Violinos não me saíram. E ainda por cima o mais famoso deles todos, o grande goleador Fernando Peyroteo, ficou por dizer! Imperdoável!

Jesus Correia, Vasques, Travassos, Peyroteo e Albano.


O senhor António sabia todos os 5 nomes de cor e salteado!

E ainda me sabia dizer onde tinha estado na Guerra Colonial e me contar uma ou outra estória dessa marcante vivência de há 50 anos atrás. Infelizmente, quando lhe perguntamos por aquelas 3 palavrinhas mágicas que lhe havíamos pedido para decorar há escassos minutos atrás (um pouco antes da máscara branca P2 ter disfarçado a vergonha cor encarnada estampada no meu rosto), apenas nos soube dizer uma delas. Para nós, médicos, após integrarmos toda a restante informação, é mais um daqueles casos de uma provável demência em início. Já para o senhor António e para a sua família é certamente o começar de uma longa e penosa travessia.

 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Dezanove anos e uma pandemia depois

“Pró ano é que é!”

O Sportinguista é o mais português dos adeptos de futebol nacionais. Saudoso sofredor sempre a recordar os tempos idos dos 5 Violinos, tempos em que se tivesse existido Taça dos Campeões Europeus, tínhamos limpado mais troféus internacionais que o Benfica e o Porto juntos.

 

Saudoso sofredor que perante um início de campeonato auspicioso, com vitórias consecutivas (algumas mais suadas) que acabaram por colocar o clube leonino na liderança, começava a desconfiar de tamanha sorte e a ver pairar aquela incómoda e tão familiar sensação de que seria sol de pouca dura. Afinal quem já viu fugir um campeonato por um ponto em 2006/2007 (o da mão de Ronny do Paços de Ferreira e do hat-trick do central Buba do Beira Mar com Paulo Bento) e outro em 2015/2016 (o segundo melhor registo de sempre de uma equipa no campeonato ao leme de Jesus) e ainda por cima ver o culminar de uma caminhada épica na Taça Uefa 2004/2005 numa amarga derrota por em casa frente ao CSKA Moscow, depois de ir a ganhar para o intervalo, só pode viver com a tormenta de que o pior ainda está para vir! Sempre para vir.

 

“Sofredores incondicionais” alguém nos apelidou. Uma chancela que assenta que nem uma luva em quem tristeza após tristeza, partida entediante após partida entediante, sempre continua a ir ao Estádio ou ver na SportTv a saga de todos os anos continuar sob o lema do “Pró’ ano é que vai ser!”. Pois bem, meus amigos, este ano foi! Este ano foi mesmo! O nosso grande Sporting, a maior potência desportiva nacional foi mesmo campeã nacional de futebol sénior 19 anos depois da última conquista!

 

Que dia incrível esse em que fiz 100km rumo ao Núcleo Sportinguista de Penacova para viver a tão esperada celebração junto daqueles que comigo sofreram ao longo destes 19 largos anos!

 

Não vale a pena mentir. Sempre desconfiei que não iríamos aguentar até ao fim. No último terço da temporada, muitas das vitórias eram demasiado suadas e alcançadas já ao cair do pano. Tanto milagre era de desconfiar, mas por outro lado só mostrava uma raça e um crer nunca antes vistos pelos lados de Alvalade. Era sempre até ao último minuto! Sebastian Coates, outrora contestado pelos seus ocasionais erros defensivos comprometedores, desta feita estava transformado no símbolo maior da nossa ambição desmedida, do acreditar até ao último segundo de que era possível colocar o esférico a balançar nas redes adversárias. Fosse de que forma fosse! E Palhinha, que esteve praticamente com guia de marcha na pré-temporada, acabou por ficar e estabelecer-se como um esteio fundamental de um modelo de jogo inovador para os tempos que correm e que foi recuperar os pergaminhos dos 3-4-3 dos Barcelonas de Cruyff que encantaram a Europa na primeira metade da década de 90. Rúben Amorim, benfiquista de gema, era o timoneiro improvável, que havia sido recrutado a preço de ouro a escassas semanas de tudo fechar em 2020 fruto da emergência da Pandemia Covid-19. Os anti-Varandas e os Varandistas uniram-se na desconfiança de que tamanho investimento em tão inexperiente técnico não auguraria nada de bom para o futuro de um clube que atravessava um período tumultuoso, com 3 treinadores já despedidos no decurso do ano desportivo e ainda a braços com os espojos de guerra do fatídico dia em que a Academia de Alcochete havia sido brutalmente invadida por gente que não pode ter lugar no nosso grande Sporting.

 

E depois de começarmos a perder pontos em Moreira de Cónegos a tal desconfiança veio mesmo ao de cima. Nesse jogo a sorte que tantas vezes nos havia bafejado ao longo da temporada sorriu ao adversário que marcou um monumental golaço já ao cair do pano de uma partida que vira 2 golos anulados ao recém-contratado Paulinho. Para alimentar o receio numa viragem no campeonato, nessa mesma jornada o FC Porto conseguira igualmente um triunfo suado no último instante, com Toni Martinez vindo do banco finalmente a deixar a sua marca. Teriam os Dragões encontrado o seu Mantorras? Bem, pelo desempenho nos jogos finais do campeonato parecia mesmo que sim, à medida que a distância que outrora se situava nos 10 pontos foi emagrecendo até a uma estreita cintura de 4 pontos que faziam temer o pior dos desfechos (o tal já esperado pelo verdadeiro Sportinguista calejado). No entanto, quando tudo parecia desmoronar-se por completo, com a expulsão de Gonçalo Inácio no decisivo jogo de Braga, a verdade é o remate cruzado de Matheus Nunes naquele lance estudado acabou mesmo por conceder a vitória à turma leonina. Nessa jornada, o FC Porto acabou por empatar ante o Moreirense (que curiosamente havia sido o clube a reacender a esperança dos Dragões em revalidar o título), numa partida envolta em polémica tecnológica com o VAR a anular um golo do tal Toni “Mantorras” Martinez. Não fosse o VAR e provavelmente estaria aqui a ser contada uma bonita estória de um jogador que andou na sombra toda a temporada e surgiu no terço final para ser decisivo e dar a volta aos acontecimentos.

 

Nada disso aconteceu e, assim, a bonita história que há para contar é a de um clube com uma mentalidade muito própria, assente na formação, que finalmente alcançou o troféu que lhe fugia já há 19 longínquos anos. Quando Paulinho selou o golo do triunfo ante o Boavista num Estádio de Alvalade que, embora despido de público no seu interior, nunca havia estado tão cheio desde a sua inauguração em 2003, o barulho vindo do exterior tornou-se ainda mais ensurdecedor! Era o sonho de uma geração que apenas vira o Sporting ganhar ainda andava na escola Primária, e andara toda uma vida a ver os outros envergar orgulhosamente a sua camisola no dia seguinte ao do título que teimava em fugir, mesmo quando era a equipa a praticar o mais requintado futebol em Portugal. Foram precisos 19 anos e uma Pandemia para o sonho se concretizar!

E foi também o fim de uma era. O Sporting campeão ainda no tempo do escudo, da Nokia e da PlayStation 2 já lá vai! Este é agora um Sporting que nos faz sonhar, mas de pés bem assentes na terra. Este é um Sporting que vai ter de enfrentar os desafios de uma época longa e desgastante física, mas sobretudo mentalmente com a entrada na Liga dos Campeões, palco maior do futebol europeu, onde uma potência desportiva como esta tem de estar presente ano após ano. O regresso do Público aos estádios poderá ser outro desafio. Mas uma coisa é certa, com Ruben Amorim ao leme, esse benfiquista de gema que devolveu finalmente a já esquecida felicidade àquela curva belíssima que ano após ano sempre apoiou o seu Sporting, e com esta mentalidade, estou certo que grandes dias continuarão a alvorar!

 

E este ano é que foi!