sábado, 22 de fevereiro de 2025

Memórias de uma Menção Honrosa

Balão subacromial. Mas o que raio é um balão subacromial!?

Naquela manhã pandémica de maio de 2020, o meu colega, na altura médico recém-especialista, Dr. Paulo Couto, e eu, à época médico interno de 2.º ano de especialidade, estávamos a ver a lista de doentes que tínhamos para avaliar no internamento de Ortopedia, quando nos deparámos com algo que nos detive a atenção...

 

Senhora de XX anos submetida a artroplastia com balão subacromial por rotura da coifa dos rotadores. Para avaliação e orientação.

 

Era mais ou menos isto que dizia a informação dos nossos colegas da Ortopedia. De imediato fomos pesquisar à Internet e deparámo-nos com uma tremenda escassez de informação. De seguida, ligámos ao especialista sénior da reabilitação do ombro do nosso serviço, o grande Dr. Jorge Moreira, a ver o que ele sabia sobre isto. Artroplastia com Balão Subacromial também era uma autêntica novidade para o experimentado especialista em Medicina Física e de Reabilitação que sempre tão sabiamente nos orientava.

 

Bem, lá intensificámos a busca informática e finalmente conseguimos concluir que se tratava de um procedimento recente, que consistia na introdução de um dispositivo biodegradável em forma de balão no ombro (no chamado espaço subacromial), para assim diminuir o embate ósseo entre a cabeça do úmero e o teto da articulação representado pela omoplata. Este embate, medicamente designado por conflito (em inglês impingement), é potencialmente responsável por muita dor e perda de função. Assim, este procedimento procura resolver estas queixas, dando ao paciente mais uns anos de relativo alívio até eventualmente necessitar de colocar uma prótese no ombro. Isto é o que descobrimos sobre o procedimento ortopédico. Agora, sobre o processo de reabilitação após essa cirurgia pouco ou nada encontrámos. E foi aí que tivemos de pôr as nossas cabeças a raciocinar. E também foi aí que a grande oportunidade surgiu!

 

O nosso serviço de Medicina Física e de Reabilitação construiu ao longo dos anos uma tremenda relação com o serviço de Ortopedia e Traumatologia. A interligação entre estes departamentos permitiu o desenvolvimento de vários protocolos de reabilitação para doentes submetidos a várias cirurgias ortopédicas. E depois da reabilitação após prótese da anca, joelho e do ombro, eis que estava eminente o nascimento do protocolo de reabilitação após artroplastia com balão subacromial!

 

Quem me conhece bem sabe que nada faz a camada muscular das minhas artérias contrair mais do que a descarga de adrenalina que ocorre sempre que a minha motivação está em alta! E na minha vida profissional as comportas da barragem da motivação abrem-se sempre com violência sempre que um grande projeto se começa a definir no horizonte.

 

Foi precisamente o que sucedeu com o projeto “reabilitação após artroplastia com balão subacromial”! Com a colaboração do serviço de Ortopedia, conseguimos então desenvolver um programa de reabilitação completo e adaptado às necessidades destes doentes que começaram a chegar ao nosso hospital.

 

E como um projeto tão interessante e (um trabalho tão entusiasmante!) não poderia ficar guardado na gaveta, decidimos levá-lo ao Congresso Nacional da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação e concorrer aos prémios. Para o conseguir era necessário redigir um artigo científico. Precisamente, a redação desse artigo era algo no qual vínhamos a investir já há algum tempo, num processo sempre moroso, bastante trabalhoso e com os seus inevitáveis contratempos.

 

Recordo-me das muitas tardes e até algumas madrugadas dedicadas a este projeto... E lembro-me em concreto da manhã a seguir ao Sporting vs Ajax para a fase de grupos da Champions League em Setembro de 2021. Tinha ido ver o jogo a Alvalade e na manhã seguinte troquei um passeio pela soalheira Lisboa pelos raios de luz emitidos pelo ecrã do portátil que levei comigo para concluir o artigo no quarto do hotel.

 

É preciso querer... e querer mesmo muito!

 

E a recompensa lá acabou por surgir. Nem sempre acontece, é por isso que a vitória, ou neste caso um terceiro lugar entre dezenas e dezenas de trabalhos a concurso, acaba por ser assim tão saborosa. É verdade! Este nosso projeto arrecadou uma Menção Honrosa para Melhor Tema Livre no Congresso Nacional da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação em Outubro de 2021!

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Agora volvidos mais de 3 anos desde a altura em que redigi este texto e nas vésperas de mais um Congresso Nacional, a minha vida é bastante diferente. Recordo-me dos vários projetos e trabalhos que desenvolvi ao longo do meu internato, das horas neles despendidas, do absoluto foco que dominou esses anos... A verdade é que hoje em dia a adrenalina já não corre no corpo como nesses anos... Encontro-me a navegar à deriva... A tempestade ora
me arrasta para um lado, ora me empurra para o outro... O barco não virou, mas o seu rumo também ainda não encontrou.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Memórias do Internato Médico - a instabilidade

A vida de um Médico Interno é pautada pela instabilidade. 

Em primeiro lugar, a esmagadora maioria dos colegas que fazem turnos nos Serviços de Urgência vivem numa tremenda instabilidade de horários. Há sempre aquela duvidazinha se vão estar livres no fim de semana em que os colegas com quem não estão há meses estão a combinar um jantar. Não conseguem saber se vão conseguir ir ao concerto que tanto desejam ir que terá lugar daqui a meio ano.

 

Depois, existe também a instabilidade da dúvida do dia seguinte. O dia seguinte à conclusão do Internato de Formação Específica, o tal dia a seguir a tornar-se Médico Especialista. Para onde ir a seguir? Permanecer na mesma instituição ou mudar de local de trabalho? Continuar em Portugal ou partir rumo à aventura do estrangeiro?

 

E no caso concreto dos Médicos Internos da minha especialidade, Medicina Física e de Reabilitação (MFR), que provêm de um hospital não central, existe aquela instabilidade da necessidade de realizar múltiplos estágios fora da sua instituição de origem, com tudo o que isso acarreta de bom e de mau. Não é fácil gerir a logística de encontrar casa para morar no novo destino, manter uma relação amorosa... Enfim, é desafiante!

 

E obviamente que tal instabilidade é maior nas instituições que gozam de menor idoneidade formativa, contudo, quando se chega ao 4.º ano de Internato de MFR é quase universal o êxodo dos Médicos Internos rumo aos Centros de Reabilitação. Tal passo formativo reveste-se de suma importância dado que permite ao Médico em especialização tomar contacto com a reabilitação diferenciada multiprofissional e multidisciplinar de adultos e crianças com AVC, lesões medulares, traumatismos encefálicos, doenças cardiorrespiratórias e neurológicas várias, entre muitas outras. Qualquer Centro de Reabilitação em Portugal oferece a maioria dos cuidados que os pacientes adultos necessitam, contudo, o 4.º ano de Internato é também uma grande oportunidade de conhecer a realidade dos vários centros do país e, como tal, não é raro os Médicos Internos fazerem um périplo pelas várias instituições. E os horizontes expandem-se!

 


Transcorrido já mais de meio ano desde que iniciei este percurso itinerante, posso afirmar que o balanço tem sido bastante positivo, mas também agridoce.

Comecei o ano no Centro de Reabilitação da Região Centro, o Rovisco Pais, rumei ao Centro de Reabilitação de Alcoitão, seguiu-se o Hospital de Santo António no Porto e agora vou completar o ano no Centro de Reabilitação do Norte, em Valadares. Procurei sempre dar o meu melhor nestes vários hospitais por onde tenho passado. O que tenho vindo a aprender e as relações de trabalho que tenho vindo a cultivar, só mais tarde vou saber dar o devido valor. As deslocações são difíceis, mas o que mais custa é a hora da despedida! Quando se alcança o ponto de rebuçado, no qual o trabalho começa a fluir como se já fosses parte da engrenagem, eis que o árbitro apita para o final da partida e chega a hora de rumar ao balneário, fazer as malas e rumar a outras paragens. Nem dá tempo para nos fartarmos! E às vezes a saudade toma-nos de assalto. Tenho saudades de todos estes sítios por onde tenho passado. Tenho saudades do hospital onde comecei o Internato. Tenho saudades da cidade que é minha e ao mesmo tempo nunca o foi...

 

É por isto que quando paro e nos deito na espreguiçadeira ao sol, às vezes começo a imaginar que seria bom a vida ser um jogo de PlayStation.


Daqueles videojogos mais modernos em que a história principal assume já a complexidade de se poder seguir vários caminhos e chegar a diferentes finais consoante as escolhas que se forem fazendo à medida que o jogo se desenrola.


Se eu pudesse, gravaria o jogo no momento imediatamente antes da primeira grande decisão e, a partir daí ia jogando em direção a um dos desfechos. Jogava, jogava, jogava até chegar ao fim. Ou me fartar. E depois fazia loading no save primordial e, voltando ao início rumaria agora noutra direção. E mais uma vez faria tudo para alcançar o 100%. Faria todas as missões secundárias, recolheria todos os hidden gems... e no final, talvez regressasse uma vez mais ao momento inaugural... e se as forças ainda mo permitissem, se a ambição ainda me impulsionasse, voltaria a recomeçar tudo outra vez, em busca doutro final distinto.



Nota: A versão inicial deste texto foi redigida em Setembro 2022, quando me encontrava no 4.º do Internato de MFR. Na altura estagiava no Centro de Reabilitação do Norte e estava desde o início do ano fora do meu hospital de origem, o então denominado Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga. Este texto ficou esquecido vários anos na gaveta e decidi agora publicá-lo. Mantém-se perfeitamente atual, de tal modo que não necessitei de alterar o conteúdo.