Crónica #4 - Ambliopia Orçamental - Novembro 2014
Continuando a série das crónicas mais marcantes que escrevi para a revista Anemia aqui fica um texto que compara uma doença oftalmológica com o orçamento de estado e as desigualdades de sacrifícios financeiros entre ricos e pobres.
A ambliopia unilateral,
informalmente conhecida como “olho preguiçoso”, é uma patologia na qual um dos
olhos vê desfocado e o outro vê bem, porque a retina do olho deficitário não
envia a mesma quantidade de informação ao cérebro do que a retina do olho
normal. Assim, a zona do cérebro correspondente à retina má não se desenvolverá
tão bem, o que leva o nosso cérebro a processar quase somente a informação
correta. Ou seja, perante duas imagens, uma focada e outra desfocada, o cérebro
opta pelo “facilitismo” de interpretar apenas a boa, deixando a defeituosa de
lado. Isto leva a que o cérebro fique a ver mal de um olho para sempre… a não
ser que o médico intervenha!
A intervenção médica nesta doença
inclui oclusão ou penalização do olho saudável. O objetivo principal é sempre
obrigar o cérebro a usar corretamente o olho afetado. Para isso, ou se tapa o
olho bom (oclusão) ou se diminui temporariamente a sua acuidade visual
(penalização). Ou seja, para que o mau aprenda a ser bom, o bom tem de ser
prejudicado…
E se pensarmos bem neste assunto,
aparentemente tão médico apenas, quantas vezes é que nos deparamos com
situações equivalentes nas nossas vidas? Por onde anda lá fora do hospital o
“Paga o justo pelo pecador”?
Começando por nós, é fácil
reparar que a esmagadora maioria dos estudantes de Medicina teve um percurso
escolar repleto de resultados brilhantes. No entanto, de certeza que a certa
altura se sentiu obrigado a suspender a curva abruptamente ascendente da sua
aprendizagem para que os companheiros de turma o pudessem acompanhar naquela
viagem. Algo ao jeito do ciclista que vai a escalar bem a montanha, mas cujo
diretor desportivo o obriga a aguardar pelo companheiro que se encontra em
dificuldades. Afinal, o espírito de equipa é isto: num dia eu, noutro dia tu,
mas sempre nós!
E aproveitando estarmos na
ressaca da discussão do Orçamento de Estado para 2015, facilmente nos podemos
lembrar da típica luta contra a pobreza que há anos se trava por terras lusas.
Orçamento após orçamento, eleição após eleição, a oposição e o povo reclamam
que os ricos é quem devem pagar mais as dívidas. Obviamente que o princípio no
qual assenta esta reivindicação (equidade) está certíssimo, mas todos nós
sabemos que o que muita desta gente (alegadamente amiga do povo) quer é, pela
força do discurso fácil e direto ao coração fraco e carente das hostes, colocar
o povo no bolso para servir os seus propósitos!
Mas então não é, de facto, muito
mais fácil cortar nos ricos do que acabar com os pobres? Que utopia essa de
exterminar a pobreza… Sim, talvez puxar para a esquerda os valores mais à
direita da Curva de Gauss seja a solução mais fácil … e os governos até vão
cortando qualquer coisita nos ricos, mas também não se podem esticar muito, que
eles ainda fogem é todos para a Holanda!
Portanto, não é mais fácil puxar
os sonhadores para o fundo do poço, quando estes já estão quase a alcançar o
topo? Não é mais fácil sermos todos maus, do que termos de olhar lá de baixo
para os bons? Pois é, pois é… ao contrário do que acontece no tratamento da
ambliopia, com o qual o cérebro aprende a usar bem o lado mau, no resto do
mundo, o pobre continua a morrer à fome e os seus amigos… engordando!
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