
Nessa
manhã a doente apresentava-se ainda algo desperta e à minha aproximação esboçou
um “aluado” sorriso de quem já ostentava um precário estado de consciência… E
foi nesse estado que a sua mão direita pegou na minha mão esquerda e levemente
a fez viajar aos seus lábios, brindando-me com um inesperado beijo. Um beijo
daqueles que já não se dão hoje em dia. Um beijo dos tempos idos do Romantismo
dos cavaleiros que pegavam na pálida mão da donzela sublime e lhe acariciavam o
dorso no calor dos lábios ajoelhados.
Acontece
que desde esse marcante impacte inicial, esta senhora entrou numa espiral
decadente. Deixou de responder à nossa interpelação, começou a ficar bastante
prostrada até que adormeceu por completo. As tensões arteriais eram baixas, os
níveis de oxigénio no sangue não eram famosos… Este estado a caminho do
“vegetal” fazia antever uma morte breve e assim teve de ser tomada uma sempre
ingrata decisão: colocar a senhora em medidas de conforto, a fim de lhe
proporcionar um final de vida o mais pacífico possível.
Informado
da situação, o filho ficou consternado: havia perdido o pai recentemente e agora
seguir-se-ia o luto pela mãe, que ainda há poucos meses já havia sofrido um AVC.
A
verdade é que os dias iam passando e, ao contrário do esperado, a senhora ia-se
aguentando. O gemido agónico com que este ser adormecido nos cumprimentava
todos os dias vivia agora em comunhão com uma surpreendente melhoria das
tensões, frequências cardíacas, saturações de oxigénio e parâmetros analíticos.
Surpreendentemente parecia estar a contrariar o “choque séptico” que tantas
feridas infligira aos seus órgãos.
Entretanto,
um sobrinho seu, a trabalhar no estrangeiro, ao saber do estado de saúde
periclitante da tia, não hesitou em fazer-se à estrada para lhe vir dar um
último carinho. Nesta altura, fomos ponderados e transmitimos que se, por
milagre a tia não falecesse a breve trecho, o mais provável seria ficar
remetida ao leito, exigindo cuidados
permanentes até final dos seus dias.
No
entanto, há segunda semana de internamento a senhora permanecia na sua luta
pela vida. E agora começava a despertar! Começou a abrir os olhos, o gemido
agónico cedia, um dia já nos saudava com um verdadeiro “olá”. Num outro dia já
respondia a perguntas de “sim” e “não”. Mais tarde até já cumpria algumas
ordens simples, como “piscar os olhos”. Entretanto, já fez levante para cadeirão
e já tolera alguma alimentação oral.
INACREDITÁVEL!
E
hoje que a senhora já estava perfeitamente estabilizada do tenebroso quadro
clínico que a trouxe para as nossas mãos, é transferida para uma outra unidade, onde prosseguirá a recuperação de um estado do qual toda a gente pensou que não iria sair já mais!
Quando
fui dar a notícia, a senhora ficou
um pouco triste, mas, com a minha mão esquerda acariciando a sua mão direita,
lá lhe expliquei que era bom sinal, era porque já não necessitava de uma
vigilância tão apertada e porque tinha conseguido dar a volta mais importante
ao seu grave estado de saúde. E ela com as poucas forças que agora possuía lá pegou
na minha mão direita e, com bastante dificuldade, lá a levou de novo aos seus
lábios, despedindo-se de mim com um beijo que só ela sabe o que significará e
que eu espero que seja felicidade!
A vida tão perto da morte e nós a desperdiçarmos a vida que é o de mais belo e cheio de amor, temos. Bem haja pelo seu texto, pelo seu testemunho, Gonçalo. Beijinho
ResponderEliminarA perenidade da vida, de facto, gera em nós reflexões que muito em causa põe as forças que nos movem no dia-a-dia. Muito obrigado por ler e comentar, professora Ana Clara! Bjs
EliminarA perenidade da vida...... isso mesmo! Sabe, ando a aprender a voltar a gostar da vida e de a respeitar..... devagar, mas vou lá. Beijo
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