quarta-feira, 1 de maio de 2019

Autópsia a um romance incomeçado

Quantas são as vezes em que teimamos em remexer no passado? Quantas são as vezes em perdemos tempo com ações que já sabemos que serão inconsequentes? Desde os clássicos e arrítmicos “ses”, à curiosidade (e por vezes ignorância) científica que motiva rios de exames complementares de diagnóstico... ao amor.

A crónica que vos trago é a estória de um rapaz que vive sepultado num romance incomeçado.

Não foi uma paixão daquelas de ficar sem jeito como dizem os brasileiros, não. Foi antes uma sensação de amor que terá crescido, tal como aquele recém-nascido que um dia vemos no colo da mãe e no seguinte já nos faz aterrar por agora já ter 18 anos e nós nem termos dado pelo tempo passar.

O protagonista deste curto périplo, apesar de bonito, era muito tímido. Esta aparente incongruência deve ter sido motivada por algum evento da infância, período pedreiro do edifício da personalidade. E a juntar a essa manietante timidez acrescia o facto do sentimento ser para com a sua melhor amiga!

Por isso, valeria a pena dar um passo em frente? Valeria a pena arriscar uma sólida amizade por um amor incerto?

Certo é que o precipício que o rapaz escavou à sua frente terá sido bem mais profundo do que a distância que teria de saltar para alcançar a outra margem... E o sentimento foi reprimido.

E não foi apenas o sentimento que foi reprimido. Foi a curiosidade. Curiosidade? Sim, curiosidade. É que uma vez no calor da noite, com o vapor do álcool a condensar-se na cabeça, enublando barreiras, a amiga ter-lhe-á dado a entender que entre eles poderia existir algo mais... Ou pelo menos foi isso que o rapaz entendeu, mas nunca teve a coragem de esclarecer...

Alguns meses mais tarde, eis que a noite faz das suas diabruras! A amiga envolve-se com um conhecido do rapaz, tinham todos jantado juntos nessa noite e a amiga havia achado graça ao jeito dele: confiante e sedutor. Aventura no clímax da noite. One-night stand. Ou assim era suposto. A verdade é que não se tratou de uma relação fugaz. Não. A relação cresceu e floresceu num belo namoro que ainda perdura. E todos se dão bem, os namorados e o eterno e efémero apaixonado que nem sequer isso chegou a ser.

Ainda hoje, quando se despedem, o rapaz permanece quedado a ver o casal desaparecer de mão dada no horizonte finito do espelho retrovisor. Repousa a cabeça no encosto, suspira e liga a ignição. Arranca e acelera. Acelera pela estrada. Acelera bem para lá dos limites de velocidade. E olha para o lado. Olha e vê um banco vazio. Sempre vazio. E é nessas alturas que a dúvida patológica lhe assalta a mente. O que teria acontecido se ele tivesse escolhido saltar o tenebroso precipício em vez conter o impulso? O que teria acontecido se ele tivesse tido a coragem de tirar a tal dúvida? O que acontecerá se algum dia tiver a coragem de fazer a tal pergunta?

São estes os tais clássicos e arrítmicos “ses” que nos deixam sepultados num passado que nunca nos pertenceu e perdida a oportunidade de esclarecer cabalmente as causas naturais do funeral, teimamos em exumar o cadáver. Teimamos em remexer no passado, em procurar razões para o desfecho que não teríamos evitado, em prolongar um sofrimento que sabemos só uma outra vida poderá aliviar... E com todo este cortejo fúnebre o melhor que conseguimos é obviarmo-nos da fruição do único instante que verdadeiramente pode ser o nosso: o presente!

Enfim, esta é a estória melancólica do saxofonista que nunca chegou a pegar no saxofone. Do escritor que nunca chegou a escrever. Do amante que nunca chegou a amar. Do doente que morreu de enfarte precipitado pelo clássico e arrítmico “se” enquanto envelhecia, recostado e tristemente confortável na poltrona, vendo na tela a fita correr!

Sem comentários:

Enviar um comentário