domingo, 9 de fevereiro de 2020

E a Primária já foi há 20 anos! – Parte 1

“Não me obriguem a zangar-me com vocês logo no primeiro dia!”

Todos nós temos uma recordação do primeiro dia de escola. Esteja ela ainda viva como a sensação de novidade que uma criança traz para casa quando aprende pela primeira vez a dizer o alfabeto de trás para a frente ou já mais apagada como as páginas gastas de uma sebenta tantas vezes folheada, todos nós temos um evento que lembramos desse dia único.

“Não me obriguem a zangar-me com vocês logo no primeiro dia!”

Há anos esta frase me vem à cabeça. A sua Autora, infelizmente, já partiu. Tendo falecido andava eu ainda no 5.º ano, a Senhora Professora não poderá esclarecer as circunstâncias que A levaram a ameaçar a turma naquela manhã de setembro de 1999... mas com certeza que deve ter sido por algum frenesim coletivo, vulgo barulho, que, entretanto, se instalara. O que é certo é que todos ficamos em sentido! Todos ficamos a perceber, em escassos minutos, que a Senhora Professora Natália era uma mulher que impunha respeito... mas também muito medo!

A propósito desses 20 anos que já passaram, recordava com alguns dos presentes nesse dia, amigos para a vida, outros episódios que ajudaram a sedimentar o fóssil educativo que aqueles que passaram pela Escola Maria Máxima na viragem do século puderem ainda vivenciar. Era um ensino “à antiga”. Uma educação baseada na repressão verbal e física. Na tabuada dos 8, 8x7 ou era igual a 56 ou a um valente puxão de orelhas! Se fizéssemos muito barulho, o castigo seria escrever 100 vezes em casa “Não vou fazer mais barulho nas aulas”. E se viéssemos com as sapatilhas ou sapatos sujos do recreio, o que perigosamente sucedia em dias de chuva em que teimávamos em dar uns toques na bola, habilitávamo-nos a levar uma valente reprimenda caso o calçado não passasse na inspeção obrigatória antes do regresso à sala de aula!

Tendo sido sempre dos mais bem-comportados, aquilo a que chamamos um “santo”, alturas houve em que inevitavelmente “caí do altar”. Talvez a mais marcante de todas seja uma que demonstra bem o poder da Autoridade que dominava e governava todo o ambiente da sala de aula. Tão asfixiante chegava a ser tal Presença que ainda hoje julgo que até os raios de sol pediam licença para entrar antes de timidamente se imiscuírem através da transparência das vidraças da sala. Bem, não dispersando como fazem os raios de luz ao atravessar a interface entre dois meios diferentes, existia, então, numa mesinha junto à parede dessas vidraças uma buzina em forma de corneta. Na ausência da Senhora Professora, já tinha visto um ou outro colega ir lá apertar a pera da buzina, fazendo emitir um som característico que ecoava pela sala inteira. A imagem daquela buzina, ali tão placidamente pousada na vertical, com a boca da corneta a beijar o tampo da mesa velha como as ventosas da lampreia se colam à parede de um tanque, fazia crescer em mim a vontade entrópica de ir lá tocar. E num momento da aula em que andávamos a fazer trabalhos em grupo e a Senhora Professora estava de pé a tirar dúvidas a uma aluna, não consegui aguentar mais e a serpente disfarçada de inquietude de petiz me fez ser Adão e apertar o fruto proibido. O som não saiu forte à primeira, pelo que, insatisfeito, fiz uma segunda tentativa. Desta feita, o gritante ressoar da pera sufocada no interior da minha mão direita cerrada com toda a força, ao alcançar os ouvidos da Senhora Professora, de imediato Lhe retirou a atenção do caderno que a aluna mostrava, fazendo-A automaticamente elevar o rosto em direção à fonte daquele barulho que tão bem conhecia. E de forma tão instantânea como a luz surge de uma lâmpada quando ativamos o interruptor, a expressão da Senhora Professora ganhou aquele tom carregado e fechado, com o brilho a sair-Lhe dos olhos como flechas flamejantes e um inclinar de cabeça que significaria um valente par de estalos caso este infante não estivesse protegido por duas ou três secretárias de distância, que nessa hora constituíram muralhas mais altas do que as da China!

Era este o poder da Saudosa Senhora Professora Natália!

Era este ensino o autêntico fóssil vivo numa sociedade que já começava a dar sinais de retirar autoridade e prestígio aos docentes.

Era esta forma de aprender a última folha dos modelos educativos que vigoraram durante séculos... a derradeira linha das lições que o meu avô e o meu pai tiveram, na mesma escola, sentados com os cadernos pousados nas mesmas carteiras que naquele dia me protegeram de um valente par de estalos.

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