sexta-feira, 6 de março de 2020

Aquele eterno frenesim

E agora o que é que eu vou fazer? Quando o bilhete de identidade diz ter chegado a hora da Reforma, alguns malucos chegam a desesperar por não se imaginarem a fazer outra coisa que não o ofício de sempre. Porventura, o arquétipo desta paixão será o falecido cineasta Manoel de Oliveira, que apenas deixou a realização quando faleceu aos 106 anos de idade! Na área da Medicina recordo os exemplos dos enormes Gentil Martins e Linhares Furtado, cirurgiões que ficaram ligados a dois feitos assinaláveis em Portugal: o primeiro liderou a primeira separação de gémeos siameses portugueses, o segundo conduziu o primeiro transplante renal em terras lusas. E ambos continuaram a sua atividade bem para lá da hora em que as mãos já lhes começavam a tremer, nessa altura “apenas” dando consultas. No nosso município, temos outro caso, o do obstetra Artur Coimbra, que, depois de ter trazido muitas crianças para fora da barriga das mães de Penacova, por cá continua a dar consultas. 

Todos estes exemplos são mais ou menos famosos aos olhos do grande público. No entanto, há outros casos de eterna paixão pelo ofício que, tendo passado anónimos ao escrutínio mediático, merecem o devido reconhecimento daqueles que tiveram o privilégio de os testemunhar. A propósito disso, há cerca de um mês atrás, teve lugar um dos maiores tumultos a que a minha terra natal assistiu nos seus largos séculos de existência. Nunca antes por cá tinha visto tamanho corrupio de gente nem semelhante desfile de viaturas como no funeral do Sr. Alberto “Chupinhas”!

A grande maioria dos penacovenses decerto se recordará desta ilustre figura do Terreiro de Penacova. Taxista há larga dezena de anos, Alberto “Chupinhas” prolongou a sua atividade até à bonita idade de 88 anos! Até a “doença prolongada”, termo que os jornalistas costumam empregar para designar a enfermidade genericamente conhecida como “cancro”, o obrigar a reformar de vez em novembro de 2019, o dono do Táxi “Chupinhas” todos os dias bem cedo se levantava para correr a estacionar na Praça pelas 8 da manhã. Não é para todos! O homem era conhecido pela cautela com que dirigia a sua viatura, o que, se por vezes irritava os apressados que se viam obrigados a marcar passo atrás do taxista, na verdade lhe garantiu uma carreira sem acidentes dignos de registo! É obra! Sobretudo para quem percorreu o país de lés a lés ao volante do seu táxi!

Alberto, mas eu não te disse para desligares o telemóvel!!!, foi a frase enfurecida que nos habituámos a ouvir da boca da sua esposa quando o telemóvel lá teimava em interromper um qualquer almoço de família e fazia o homem abalar a todo o gás rumo a mais um serviço. Fosse para Trás-os-Montes ou para o Algarve, de manhã cedo ou pela noite dentro, os serviços de táxi eram a única coisa que faziam largar o tacho a este homem que sempre foi um bom garfo. Até bom demais! E quando muitos se mostravam melindrados por ver o Ti Alberto “Chupinhas” abandonar a meio uma Festa da Ponte, eu, por outro lado, sempre vi nisto algo de incrivelmente fascinante! É que ver um homem de 70 e tal anos, de 80 e tal anos, levantar-se assim todo apressado, qual médico chamado para atender a uma emergência, sempre constitui para mim algo de verdadeiramente assombroso!

Deixem andar o homem!, era o que eu dizia. É que, afinal, enquanto ele andar, é uma alegria! E foi uma imensa felicidade vê-lo neste incrível frenesim quase até ao dia em que a água lhe benzeu o rosto na hora da despedida. Nesse dia, por entre lágrimas, contaram-se estórias, como aquelas vezes em que o compadre Alberto no seu trajeto para casa largava um cliente e nada lhe cobrava por precisamente... lhe vir em caminho.

E só agora, passado pouco mais de um mês do dia em que ajudei a carregar o caixão do falecido “Chupinhas”, é que me apercebo do quão parecido sou eu com este taxista que Deus me deu a conhecer como avô.

Aquele seu frenesim quando recebia um serviço, o modo precipitado como largava tudo para trás para ir abraçar a sua grande paixão, conduzir, faz-me agora recordar das vezes em que eu próprio corro a me alhear de tudo, magicamente encerrado no mundo do meu escritório. Fechado no mundo dos estudos, libertado no universo da escrita... Sem sábados, domingos ou feriados, desde o passado da escola até ao presente da profissão. Raramente por obrigação, quase sempre por paixão!

Amanhã falamos.

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