quarta-feira, 29 de abril de 2020

Crónicas em Tempo de Pandemia - Virá aí um novo tsunami pandémico?

Quarentena. Isolamento Social. Estes são dois termos que todo o mundo se habituou a pronunciar neste virar de década.

Fruto de um poder de propagação de que não há memória, a COVID-19 tem votado milhões de famílias e amigos ao afastamento. Pois bem, num mundo que dispõe dum manancial de terapêuticas meticulosamente desenvolvidas em laboratório para as mais variadas maleitas, ironia das ironias, parece que a distância é a única arma para travar o avançar implacável deste vírus.

Dilema. Este é outro dos vocábulos que mais têm cruzado a mente de toda a gente. Não que seja noticiado como a exaustiva e compulsiva atualização diária dos números da pandemia, mas a verdade é que muitos de nós também estão a tentar sobreviver à autêntica turbulência de pensamentos e sensações que tem posto o nosso intelecto à deriva nestes últimos tempos.

Por esta altura, completam-se sete semanas desde a última vez que estive na “minha terra”, Penacova. Nesse fim de semana de 14 e 15 Março, já muito se especulava sobre o que iríamos viver nas semanas que se seguiriam. E o cenário do Estado de Emergência acabou por se confirmar escassos dias mais tarde, começando a vigorar a 18 de Março. Independente disso, as idas a “casa” seriam invariavelmente suspensas por tempo indeterminado. É que como médico tenho de dar o exemplo! Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! O princípio bioético da não-maleficência pela qual todos os médicos e restantes profissionais de saúde se devem reger, diz-nos que devemos evitar a todo o custo fazer mal aos nossos doentes. Como tal, se numa situação normal não estaria afastado mais do que dois fins de semana da “minha terra”, não posso de maneira alguma ignorar o facto dos meus pais estarem numa faixa etária de risco para as tormentas a que têm sido votados por este novo Coronavírus muitos dos adultos de meia idade por esse mundo fora.

Por isso, por mais saboroso que fosse galgar pelo asfalto e romper por entre a floresta só para os abraçar, a verdade é que tal poderia representar um amargo dissabor. E se eu estiver contaminado e não tiver sintomas? E se eles contraírem doença? E se, por azar, até ficam gravemente doentes? Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! É nisto que cada um de nós tem de pensar para conseguir proteger ao máximo os seus. Para todos conseguirmos proteger todos!

Por aqui na Feira, no Hospital de São Sebastião, praticamente dia sim, dia não, se depara com um doente assintomático cujo teste de rastreio da COVID-19 acaba por vir positivo. E por todo o País também tem sido assim. É que nós, médicos, importantes veículos de saúde somos antes de tudo potenciais vetores de infeção. Médicos, Enfermeiros, Assistentes Operacionais e inclusive familiares são, durante todo o ano, fonte de propagação de inúmeras doenças que acabam inevitavelmente por prolongar internamentos e quem sabe, produzir lamentáveis falecimentos… São as chamadas infeções associadas aos cuidados de saúde (IACS), entidades que sempre existiram, mas que agora ganharam dimensão mediática, no advento duma crise de saúde pública e económica sem precedentes.

Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! Desde sempre que nós contribuímos para espalhar infeções. Tantos doentes que fomos ver sem as devidas cautelas! Tanta roupa conspurcada que levamos para casa!

Agora que entramos num período em que se vai assistir ao aliviar do cinto desta austeridade social, mais do que nunca se exige cuidado para não prejudicar aqueles de quem mais gostamos e aqueles de quem nem o nome sabemos! O Estado de Emergência apenas acabou no papel! Ainda mal superamos a primeira onda da pandemia... ainda mal emergimos a cabeça destas águas agitadas... ainda mal expelimos esta água em que quase afogamos os nossos pulmões... já estamos convencidos que podemos virar já as costas ao oceano. Não podemos fazer isso! Se agora cairmos na relaxante armadilha de deixar o corpo boiar ao sabor destas águas perigosa e enganadoramente mais tranquilas, é quase certo que vamos acabar por ser apanhados desprevenidos! É que agora que vamos começar (lentamente?) a nos reaproximar, uma nova vaga da pandemia se perspetiva no horizonte e talvez assim não tão distante quanto hoje se julga. Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! Só nós podemos travar este novo tsunami pandémico!

domingo, 12 de abril de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Folar da Páscoa

A Páscoa e o Natal representam grandes oportunidades para regressar a “casa”. E à semelhança da quadra natalícia também a época pascal tem o seu doce tradicional. Assim, o Bolo Rei é por altura destronado pelo Folar da Páscoa, iguaria tradicionalmente oferecida pelo Padrinho ao seu Afilhado. No entanto, ao contrário do doce invernal, o conteúdo desta massa cozida já em plena primavera conhece assinaláveis variações de norte a sul do País. Além do mais convencional Folar de Erva-Doce que desde sempre me habituei a saborear (com ou sem ovos), a faustosa riqueza da gastronomia lusitana exibe um incrível contraste de sabores, desde o salgado e carnudo Folar de Chaves àquele que para mim terá sempre um lugar cativo no coração, o meloso Folar de Olhão.

As mais doces folhas deste cantinho à beira mar plantado eram por mim ainda ignoradas quando iniciei a grande aventura de realizar o primeiro ano de prática médica em Faro. Mas escassos meses mais tarde, por esta altura, já carregava eu a mala do carro com exemplares desse maná olhanense, trazendo escritas nas suas folhas amanteigadas com sabor a canela já muitas estórias do marcante início de carreira numa região tão distinta daquela que me viu crescer.

Este ano, contudo, o cenário é diferente. As pastelarias até continuam a fazer folares e eu até posso voltar a carregar a mala do carro, mas por mais gasóleo que tenha no depósito não posso ir a lado algum! E nem sequer se trata de uma avaria que o carro foi à revisão recentemente e pega sempre que carrego na ignição... O que verdadeiramente não me permite galgar o asfalto rumo a Penacova são as medidas deste Estado de Emergência em que passámos a viver há quase um mês. Estas barreiras erguidas na tentativa de travar o alastrar da pandemia COVID-19 estão a impedir a maioria dos cidadãos de ir passar a Páscoa a “sua casa”. Um mal absolutamente necessário!

O novo Coronavírus não está a afetar apenas os rituais pascais, também muito tem vindo a alterar os nossos hábitos laborais. A natureza do meu ofício até me tem mantido ao trabalho e olhem que até tem sabido bem deslocar-me ao hospital só pelo desanuviar do sisudo branco das paredes de casa. No entanto, à semelhança de muitos portugueses, não tendo sido totalmente cancelada, a verdade é que a minha atividade se encontra severamente modificada! Estágios, cursos e congressos... tudo tem vindo a ser diferido. E quem me conhece bem sabe a “pica” que isso me dava... Aquele adrenérgico despertar de termos o mundo inteiro para conquistar, por agora vai ter de esperar. É que outros valores mais alto se alevantam! A pandemia COVID-19 põe em sério risco a sobrevivência da sociedade mundial tal como a conhecemos. E não são apenas vidas que se têm vindo a perder, é também a nossa maneira de ser que corre o risco de não resistir a esta prolongada estadia nos Cuidados Intensivos.

Por isso, nesta Páscoa temos de ser fortes! Nesta Páscoa temos de ser inteligentes! Em vez de irmos a correr a abraçar os nossos pais, os nossos avós e os nossos padrinhos, façamos antes uso da tecnologia. Peguemos no telemóvel e façamos videochamadas. Porque se queremos que daqui a um ano o nosso Padrinho nos volte a presentear com o saboroso Folar da Páscoa, hoje temos de ser estoicos perante a sedutora tentação daquele sentido e apertado abraçar que uma vida inteira para sempre poderá asfixiar!

sábado, 4 de abril de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Eutanásia pandémica

Ai Senhor Doutor, tenho andando tão mal dos ombros e das costas… O meu marido é um santo, ele faz-me tudo... olhe, ele até já me disse: se tu precisares, eu arranjo a eutanásia para ti!

Dias depois do histórico 20 de fevereiro de 2020, no qual o Parlamento aprovou a despenalização da eutanásia em Portugal, uma senhora idosa saíasse com esta tirada na nossa consulta de reabilitação.

E agora, apenas mês e meio decorridos desde essa assinalável data, parece que tudo não passa de um sonho distante... bem distante... Parece mentira! Ainda há coisa de 2 meses andávamos nós a discutir a descriminalização da eutanásia e agora andamos todos a falar de infeções víricas! Ainda há coisa de 2 meses andávamos nós a discutir a morte e agora andamos todos a lutar pela vida!

As névoas destas 6 semanas que já passaram (parece mais que foram 6 anos!) quase fazem esquecer, mas ainda me recordo da grande celeuma que o debate motivou no Parlamento. A discussão não só azedou nos prós e contras da morte medicamente assistida, como também houve alarido aquando da deliberação em submeter ou não o delicado tema a referendo. A verdade é que a decisão acabou por não ser alargada à população, como havia sucedido no caso do aborto até à décima semana de gravidez em 2007, e o único passo que neste momento impede a eutanásia de ter lugar legalmente em Portugal é o crivo do Presidente da República. Pois é, esta que constituía provavelmente a última “batata quente” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, acabou por ficar esquecida no forno, graças a um vírus em forma de coroa que não avisou ninguém de que vinha para jantar.

É irónico, não é? Nem tempo houve para os jornais serem inundados com reportagens de médicos que iriam alegar objeção de consciência para se recusar a cometer tal ato. E o País nem sequer chegou a conhecer o primeiro doente a beneficiar da eutanásia… E será que ele ainda continua vivo?

Tal como a doente que veio à nossa consulta, também muitas pessoas (e muitos deputados) revelavam algum desconhecimento sobre os reais pressupostos desta “solução final”. A ideia que transparecia diariamente nos noticiários e conversas de café (ai que saudades de uma boa conversa de café...) era que a sociedade portuguesa arranjara uma forma legal de despachar todos os incómodos velhos que enchem hospitais, lares e unidades de cuidados continuados. Pois desengane-se quem assim pensa, que a eutanásia disso não se trata! Não sei se sabem, mas só doentes muito bem selecionados, face à irreversibilidade da sua condição clínica entre outros critérios apertados, podem, de facto, requerer a morte medicamente assistida.

Portanto que se saiba, o Coronavírus, apesar de já ter invadido em força lares de idosos de norte a sul e vitimado mais de duas centenas de portugueses, ainda não terá visitado os verdadeiros e reais candidatos à eutanásia. Mas isso agora não interessa nada! O que importa agora é arranjar Equipamentos de Proteção Individual (Senhor Primeiro-Ministro, eles estão mesmo em falta!). O que importa agora é lutar para que Ramalho Eanes não tenha de ceder o ventilador ao jovem que estará a seu lado! O que importa agora é ficarmos em casa! O que importa agora é travar esta pandemia!

E depois, quando tudo isto acalmar e voltarmos a ter pachorra para discutir apaixonadamente a morte em vez de cuidar desenfreadamente da vida, o nosso Presidente lá terá de ir buscar ao forno o tal assado. Cuidados Paliativos, Eutanásia... O debate até pode já estar queimado, mas ainda há de ter sobrado alguma batata para nós trincarmos!