sábado, 4 de abril de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Eutanásia pandémica

Ai Senhor Doutor, tenho andando tão mal dos ombros e das costas… O meu marido é um santo, ele faz-me tudo... olhe, ele até já me disse: se tu precisares, eu arranjo a eutanásia para ti!

Dias depois do histórico 20 de fevereiro de 2020, no qual o Parlamento aprovou a despenalização da eutanásia em Portugal, uma senhora idosa saíasse com esta tirada na nossa consulta de reabilitação.

E agora, apenas mês e meio decorridos desde essa assinalável data, parece que tudo não passa de um sonho distante... bem distante... Parece mentira! Ainda há coisa de 2 meses andávamos nós a discutir a descriminalização da eutanásia e agora andamos todos a falar de infeções víricas! Ainda há coisa de 2 meses andávamos nós a discutir a morte e agora andamos todos a lutar pela vida!

As névoas destas 6 semanas que já passaram (parece mais que foram 6 anos!) quase fazem esquecer, mas ainda me recordo da grande celeuma que o debate motivou no Parlamento. A discussão não só azedou nos prós e contras da morte medicamente assistida, como também houve alarido aquando da deliberação em submeter ou não o delicado tema a referendo. A verdade é que a decisão acabou por não ser alargada à população, como havia sucedido no caso do aborto até à décima semana de gravidez em 2007, e o único passo que neste momento impede a eutanásia de ter lugar legalmente em Portugal é o crivo do Presidente da República. Pois é, esta que constituía provavelmente a última “batata quente” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, acabou por ficar esquecida no forno, graças a um vírus em forma de coroa que não avisou ninguém de que vinha para jantar.

É irónico, não é? Nem tempo houve para os jornais serem inundados com reportagens de médicos que iriam alegar objeção de consciência para se recusar a cometer tal ato. E o País nem sequer chegou a conhecer o primeiro doente a beneficiar da eutanásia… E será que ele ainda continua vivo?

Tal como a doente que veio à nossa consulta, também muitas pessoas (e muitos deputados) revelavam algum desconhecimento sobre os reais pressupostos desta “solução final”. A ideia que transparecia diariamente nos noticiários e conversas de café (ai que saudades de uma boa conversa de café...) era que a sociedade portuguesa arranjara uma forma legal de despachar todos os incómodos velhos que enchem hospitais, lares e unidades de cuidados continuados. Pois desengane-se quem assim pensa, que a eutanásia disso não se trata! Não sei se sabem, mas só doentes muito bem selecionados, face à irreversibilidade da sua condição clínica entre outros critérios apertados, podem, de facto, requerer a morte medicamente assistida.

Portanto que se saiba, o Coronavírus, apesar de já ter invadido em força lares de idosos de norte a sul e vitimado mais de duas centenas de portugueses, ainda não terá visitado os verdadeiros e reais candidatos à eutanásia. Mas isso agora não interessa nada! O que importa agora é arranjar Equipamentos de Proteção Individual (Senhor Primeiro-Ministro, eles estão mesmo em falta!). O que importa agora é lutar para que Ramalho Eanes não tenha de ceder o ventilador ao jovem que estará a seu lado! O que importa agora é ficarmos em casa! O que importa agora é travar esta pandemia!

E depois, quando tudo isto acalmar e voltarmos a ter pachorra para discutir apaixonadamente a morte em vez de cuidar desenfreadamente da vida, o nosso Presidente lá terá de ir buscar ao forno o tal assado. Cuidados Paliativos, Eutanásia... O debate até pode já estar queimado, mas ainda há de ter sobrado alguma batata para nós trincarmos!

1 comentário:

  1. Ironia mesmo! Mas eu não quero falar deste assunto! Já tenho que chegue! Prefiro que me peçam para discutir meios de contribuir para uma melhor assistência àqueles que precisam de ajuda...

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