E com 95 vais para MGF?!
É a pergunta que todos fizeram
quando souberam a nota do meu amigo.
Já todos sabiam que ele queria
tirar a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF). Desde sempre que gostara do
contacto próximo com as pessoas, de empreender um bom diálogo com o doente, muitas
das vezes meras palavras de circunstância, um “small talking” sobre
experiências da vida, desde o agricultor cujas batatas teimam em se estragar
ano após ano à custa da maldita borboleta ao empresário que ainda ontem regressou
de uma viagem de negócios em Itália.
A decisão foi tomada após fazer o estágio de MGF no 6.º
ano. A ideia já vinha sendo consolidada ao longo do curso e finalmente ele
concluiu que era mesmo aquela a especialidade médica que mais o preenchia e
sobretudo aquela em que mais seria feliz o suficiente para espalhar essa mesma
alegria ao ser humano que à sua frente sofre e a si vem procurar auxílio. Além
disso, MGF é uma especialidade que lhe permite ter um horário de trabalho decente,
diurno e com disponibilidade para realizar outras atividades que o tornam mais
único e especial. É que ele adora tanto correr ao ar livre, escrever, viajar e
conviver... MGF confere-lhe tempo para depois de tratar da família dos seus
utentes poder cuidar da sua. É que a vida stressante dos médicos (e demais
profissões) tantas vezes os impede de dar atenção aos filhos, amputando o seu
crescimento do carinho, valores e experiências que os tablets e smartphones
ainda não conseguem transmitir...
Historicamente, a especialidade de MGF é das últimas a
fechar a nível nacional. Os jovens médicos que obtêm as melhores classificações
na Prova Nacional de Seriação, o tal exame de acesso à especialidade conhecido
por “Harrison”, tendem a dar primazia a especialidades como Dermatologia,
Oftalmologia, Ortopedia, Gastrenterologia etc deixando as Saúdes Públicas,
as Medicinas do Trabalho, as Patologias Clínicas e a MGF para último lugar. Porquê?, pergunta quem está de fora.
Ora, é fácil responder: são especialidades que dão maior retorno financeiro e
gozam de mais prestígio dentro da comunidade médica. Com isto não fiquem a
pensar que quem as escolhe apenas procura mais euros na carteira. Estas são igualmente
áreas com grande margem de evolução científica e tecnológica, o que atrai excelentes
profissionais que valorizam essas vertentes. No entanto, o fator monetário não
deixa de ser realidade indissociável e com peso desmesuradamente elevado nas
mentes de outros que nunca deveriam sequer ter tido a oportunidade de entrar em
Medicina. Talvez por isso é que a minha avó no outro dia veio para casa a dizer mal do médico que a atendeu no hospital...
Voltando ao meu amigo que vai escolher MGF, se ele
tivesse tirado um 60% ou 70% no exame ninguém questionaria a sua ambição de ser
médico de família, porque estaria de
acordo com a nota. Mas a verdade é que ele sacou um invejado 95%, nota que
o colocou nos 100 primeiros jovens médicos a escolher uma vaga este ano. De
repente todos começaram a pensar que ele iria desistir daquele sonho ridículo
de passar a vida a ouvir as pessoas virem ter com ele para se queixar de dores
de cabeça ou de prisão de ventre, de passar a vida a gerir a medicação para os
diabetes do sr. Júlio ou para a hipertensão da sra. Aurora, de passar a vida
num Centro de Saúde onde toda a gente se conhece, de passar a vida no serviço
Público enquanto outros colegas enriquecem no setor Privado...
E com 95 vais mesmo para MGF?!
A verdade é que este meu amigo vai mesmo escolher MGF! Ele
não precisava dessa nota, mas o orgulho pessoal fê-lo estudar mais, fê-lo
sacrificar-se mais do que decerto necessitaria... O sonho dele era esse antes
de fazer o exame. Por isso, em que é que uma nota alta que lhe permite concretizar
o seu sonho (e também de realizar sonhos de outros colegas invejosos) lhe vai
mudar o desejo?
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