domingo, 13 de maio de 2018

E com 95 vais para MGF?!

E com 95 vais para MGF?!

É a pergunta que todos fizeram quando souberam a nota do meu amigo.

Já todos sabiam que ele queria tirar a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF). Desde sempre que gostara do contacto próximo com as pessoas, de empreender um bom diálogo com o doente, muitas das vezes meras palavras de circunstância, um “small talking” sobre experiências da vida, desde o agricultor cujas batatas teimam em se estragar ano após ano à custa da maldita borboleta ao empresário que ainda ontem regressou de uma viagem de negócios em Itália.

A decisão foi tomada após fazer o estágio de MGF no 6.º ano. A ideia já vinha sendo consolidada ao longo do curso e finalmente ele concluiu que era mesmo aquela a especialidade médica que mais o preenchia e sobretudo aquela em que mais seria feliz o suficiente para espalhar essa mesma alegria ao ser humano que à sua frente sofre e a si vem procurar auxílio. Além disso, MGF é uma especialidade que lhe permite ter um horário de trabalho decente, diurno e com disponibilidade para realizar outras atividades que o tornam mais único e especial. É que ele adora tanto correr ao ar livre, escrever, viajar e conviver... MGF confere-lhe tempo para depois de tratar da família dos seus utentes poder cuidar da sua. É que a vida stressante dos médicos (e demais profissões) tantas vezes os impede de dar atenção aos filhos, amputando o seu crescimento do carinho, valores e experiências que os tablets e smartphones ainda não conseguem transmitir...

Historicamente, a especialidade de MGF é das últimas a fechar a nível nacional. Os jovens médicos que obtêm as melhores classificações na Prova Nacional de Seriação, o tal exame de acesso à especialidade conhecido por “Harrison”, tendem a dar primazia a especialidades como Dermatologia, Oftalmologia, Ortopedia, Gastrenterologia etc deixando as Saúdes Públicas, as Medicinas do Trabalho, as Patologias Clínicas e a MGF para último lugar. Porquê?, pergunta quem está de fora. Ora, é fácil responder: são especialidades que dão maior retorno financeiro e gozam de mais prestígio dentro da comunidade médica. Com isto não fiquem a pensar que quem as escolhe apenas procura mais euros na carteira. Estas são igualmente áreas com grande margem de evolução científica e tecnológica, o que atrai excelentes profissionais que valorizam essas vertentes. No entanto, o fator monetário não deixa de ser realidade indissociável e com peso desmesuradamente elevado nas mentes de outros que nunca deveriam sequer ter tido a oportunidade de entrar em Medicina. Talvez por isso é que a minha avó no outro dia veio para casa a dizer mal do médico que a atendeu no hospital...

Voltando ao meu amigo que vai escolher MGF, se ele tivesse tirado um 60% ou 70% no exame ninguém questionaria a sua ambição de ser médico de família, porque estaria de acordo com a nota. Mas a verdade é que ele sacou um invejado 95%, nota que o colocou nos 100 primeiros jovens médicos a escolher uma vaga este ano. De repente todos começaram a pensar que ele iria desistir daquele sonho ridículo de passar a vida a ouvir as pessoas virem ter com ele para se queixar de dores de cabeça ou de prisão de ventre, de passar a vida a gerir a medicação para os diabetes do sr. Júlio ou para a hipertensão da sra. Aurora, de passar a vida num Centro de Saúde onde toda a gente se conhece, de passar a vida no serviço Público enquanto outros colegas enriquecem no setor Privado...

E com 95 vais mesmo para MGF?!

A verdade é que este meu amigo vai mesmo escolher MGF! Ele não precisava dessa nota, mas o orgulho pessoal fê-lo estudar mais, fê-lo sacrificar-se mais do que decerto necessitaria... O sonho dele era esse antes de fazer o exame. Por isso, em que é que uma nota alta que lhe permite concretizar o seu sonho (e também de realizar sonhos de outros colegas invejosos) lhe vai mudar o desejo?

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