sábado, 29 de dezembro de 2018

Memórias do Ano Comum - Parte 1: O início complicado

A água quente escorria desamparada do chuveiro, embatendo com sublime estrondo nos cabelos de um jovem de cabeça baixa. A nuca permaneceu recebendo os fios de água durante segundos, minutos... e da sua mente eclodia apenas um pensamento gritante: “Se este ano vai ser sempre assim... mais vale ficar por aqui!”

Era este o meu estado de espírito depois de regressar a casa do meu segundo turno de urgência de Pediatria, a meio da minha segunda semana de trabalho. No Ano Comum em Faro, Pediatria é o estágio mais exigente. Os recém-médicos trabalham quase como se de Internos de Pediatria se tratassem... Os turnos de urgência são bastante desgastantes: no mesmo espaço físico existem dois balcões de atendimento e quase sempre duas criancinhas a chorar desalmadamente... durante 12 intermináveis horas de trabalho! Se noutros locais do país os Internos do Ano Comum quase nem podem tocar nos infantes, aqui não, aqui é a sério, porque como nos habituámos a dizer, “em Pediatria eles precisam realmente de nós!”. No Berçário, por exemplo, era nossa a tremenda responsabilidade de fazer o primeiro exame físico aos recém-nascidos e raro era termos um médico experiente por perto para validar a nossa avaliação. Aqui, sim, senti-me como a água que corria do meu chuveiro naquela noite: desamparado! É uma das consequências da falta de médicos que assola o Centro Hospitalar e Universitário do Algarve. Para nós, recém-médicos é  inicialmente alarmante ser incumbidos de tamanha responsabilidade em fase tão embrionária da carreira, mas por outro lado são inúmeras as oportunidades de aprendizagem que dificilmente se proporcionariam noutras partes do País.
 
“Se este ano vai ser sempre assim... mais vale ficar por aqui!”

Recordo-me bem das tareias que o corpo parecia ter levado quando acordava na manhã seguinte. Dormia mal, sempre mal, nas noites que seguiam estas jornadas de 12 horas. Penso que só ao cabo do sétimo turno de urgência é que já me estava a habituar à porrada. Foram dois meses cansativos. Dois meses que se seguiram às férias pós-Harrison. Tinha sido dos períodos de maior foco da minha vida. Eu costumava dizer: os culturistas acordam e vão para o ginásio, eu acordo e vou para o escritório. O ano do Harrison foi o culminar de 18 anos de escolaridade iniciados naquela manhã de Setembro de 1999 em que entrei para a Primária. Era a prova derradeira, era o desafio intelectual que toda a minha vida havia esperado. E logrado vencer o objetivo que tinha traçado, fui assolado por aquela sensação que já sabia que iria padecer: o vazio... o vazio intelectual. Durante meses tive saudades da adrenalina de ter um teste pela frente e logo por azar iniciava o meu Ano Comum pela maior das dificuldades... O mundo do trabalho tinha chicoteado bastante a minha pele!

Mas nem tudo foi mau nestes meses. Trouxe estórias engraçadas para contar, tanto dos turnos de urgência, como dos dias de internamento de Pediatria. E como a vida não se reduz ao trabalho, paralelamente ia descobrindo Faro, novas amizades surgiam e em termos de clima, a verdade é que nunca tinha passado tão bem um Inverno na minha vida.

E, de facto, a nossa vida não se reduz ao trabalho... talvez tenha sido esta a grande lição que trouxe deste ano passado em Faro!

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