sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Emoções reais

Nestes últimos tempos o mundo tem vivido mais afastado de si mesmo. Por força da pandemia, é nos pedido que mantenhamos a distância física e a compensemos com o frio calor da proximidade virtual.


Por isso, nos hospitais por este país fora muitos são os internados que agora não podem usufruir da habitual visita dos familiares e amigos. Anteriormente à emergência da Covid-19 era até possível receber visitas em vários períodos do dia, mas atualmente tal permissão afigurar-se-ia bastante arriscada, não só para o doente internado, como para quem vem de fora e para os profissionais que lá trabalham.


Assim, além da clássica medicação e toda a panóplia de cuidados associados a um internamento, a gestão das emoções passou também a ficar a cargo dos profissionais de saúde, a família adotiva destas pessoas que por estes dias se veem confinadas aos hospitais.

 

Em qualquer cargo de liderança, seja esta coletiva ou do-não-menos-importante-e-tantas-vezes-desmazelado-“eu”, a gestão emocional é das missões mais desafiantes! Manter a moral das tropas em níveis aceitáveis, de facto, nem sempre é fácil... Ainda esta semana tive uma pequena amostra quando no início da manhã procurava conhecer um paciente já internado há mais de uma semana numa das várias Unidades de Cuidados Intensivos Covid do hospital onde trabalho. O homem tinha necessitado de ventilação com o famoso capacete, mas agora finalmente estava a aguentar-se com menos oxigénio artificial. Ainda moribundo, fruto de uma noite menos bem dormida e de um café que tardava em fazer o seu efeito, fui violentamente despertado pelo brilho intenso e ofuscante de um líquido que subitamente começou a brotar do canto dos seus olhos e que António Gedeão um dia escreveu ser composto por água e cloreto de sódio

É, lidar com a lágrima do outro é intelectualmente claudicante. Ficamos sem saber o que dizer... Sem saber se devemos sequer dizer... E o que dizer... De tantas cadeiras que tive na Faculdade ao longo de seis anos de curso recordo-me de uma mão vazia de horas dedicadas a este que é dos momentos mais frequentes na vida profissional. Eu que até adoro toda a teia das vias bioquímicas e perco horas a admirar a complexidade da base azotada da molécula de DNA a quem nunca a cor dos olhos vou ver, tenho que reconhecer que o ensino da Medicina em Portugal tem de fazer um “zoom out” e evoluir no sentido de cada vez mais horas dedicar àquele simples e básico momento macroscópico em que o doente se desfaz à nossa frente.

 

Bem, felizmente, secar as lágrimas que me fizeram derramar estas palavras foi uma tarefa relativamente fácil. Afinal, não se tratava de comunicar uma má notícia. Sucede que o homem de 60 e tal anos que tinha à minha frente estava preocupado com a sua família, que já não via desde a admissão no hospital, já lá ia uma semana e tal. Estavam todos isolados no domicílio.  Covids positivos, mas bem de saúde. Mais um assintomático que inadvertidamente infetara familiares e amigos...

 

Neste caso, o tratamento prescrito foi bastante simples. Primeiro ouvimos, sem nada dizer. Depois esclarecemosas dúvidas e transmitimos palavras de consolo, esperança e incentivo. E por fim, graças à preciosa intervenção da enfermeira, realizámos a videochamada que, por breves momentos, estreitou a distância da saudade e serenou um pouco toda aquela inquietação. O antiviral, a dexametasona e a ventilação ficaram a tratar do resto.

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