sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Emoções reais

Nestes últimos tempos o mundo tem vivido mais afastado de si mesmo. Por força da pandemia, é nos pedido que mantenhamos a distância física e a compensemos com o frio calor da proximidade virtual.


Por isso, nos hospitais por este país fora muitos são os internados que agora não podem usufruir da habitual visita dos familiares e amigos. Anteriormente à emergência da Covid-19 era até possível receber visitas em vários períodos do dia, mas atualmente tal permissão afigurar-se-ia bastante arriscada, não só para o doente internado, como para quem vem de fora e para os profissionais que lá trabalham.


Assim, além da clássica medicação e toda a panóplia de cuidados associados a um internamento, a gestão das emoções passou também a ficar a cargo dos profissionais de saúde, a família adotiva destas pessoas que por estes dias se veem confinadas aos hospitais.

 

Em qualquer cargo de liderança, seja esta coletiva ou do-não-menos-importante-e-tantas-vezes-desmazelado-“eu”, a gestão emocional é das missões mais desafiantes! Manter a moral das tropas em níveis aceitáveis, de facto, nem sempre é fácil... Ainda esta semana tive uma pequena amostra quando no início da manhã procurava conhecer um paciente já internado há mais de uma semana numa das várias Unidades de Cuidados Intensivos Covid do hospital onde trabalho. O homem tinha necessitado de ventilação com o famoso capacete, mas agora finalmente estava a aguentar-se com menos oxigénio artificial. Ainda moribundo, fruto de uma noite menos bem dormida e de um café que tardava em fazer o seu efeito, fui violentamente despertado pelo brilho intenso e ofuscante de um líquido que subitamente começou a brotar do canto dos seus olhos e que António Gedeão um dia escreveu ser composto por água e cloreto de sódio

É, lidar com a lágrima do outro é intelectualmente claudicante. Ficamos sem saber o que dizer... Sem saber se devemos sequer dizer... E o que dizer... De tantas cadeiras que tive na Faculdade ao longo de seis anos de curso recordo-me de uma mão vazia de horas dedicadas a este que é dos momentos mais frequentes na vida profissional. Eu que até adoro toda a teia das vias bioquímicas e perco horas a admirar a complexidade da base azotada da molécula de DNA a quem nunca a cor dos olhos vou ver, tenho que reconhecer que o ensino da Medicina em Portugal tem de fazer um “zoom out” e evoluir no sentido de cada vez mais horas dedicar àquele simples e básico momento macroscópico em que o doente se desfaz à nossa frente.

 

Bem, felizmente, secar as lágrimas que me fizeram derramar estas palavras foi uma tarefa relativamente fácil. Afinal, não se tratava de comunicar uma má notícia. Sucede que o homem de 60 e tal anos que tinha à minha frente estava preocupado com a sua família, que já não via desde a admissão no hospital, já lá ia uma semana e tal. Estavam todos isolados no domicílio.  Covids positivos, mas bem de saúde. Mais um assintomático que inadvertidamente infetara familiares e amigos...

 

Neste caso, o tratamento prescrito foi bastante simples. Primeiro ouvimos, sem nada dizer. Depois esclarecemosas dúvidas e transmitimos palavras de consolo, esperança e incentivo. E por fim, graças à preciosa intervenção da enfermeira, realizámos a videochamada que, por breves momentos, estreitou a distância da saudade e serenou um pouco toda aquela inquietação. O antiviral, a dexametasona e a ventilação ficaram a tratar do resto.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - A gasolina do nosso Ferrari

Há uns anos atrás, estive em Zurique, uma das cidades mais caras do mundo. Naquele importante centro financeiro, além de passear pela Lindenhofplatz, de visitar o Museu da FIFA e de me deleitar com um delicioso bolo de chocolate na fábrica da Lindt, fiquei verdadeiramente abismado com o manancial de viaturas que cruzavam as suas movimentadas ruas. 

Não é que me considere um apaixonado pelos veículos de quatro rodas, mas nesse dia fiquei estupefacto com tantos e tantos bólides que só estava acostumado a ver pela televisão, nos filmes da saga Fast and Furious, e quanto muito, numa ou noutra ocasião em que emigra mais abonado decide vir exibir as suas conquistas em Agosto para a terra que o viu nascer.

 

Um dos monstros que mais me chamou à atenção foi o clássico Ferrari vermelho, figura incontornável da minha infância, imortalizado pelas vitórias de Michael Schumacher no Mundial de Fórmula 1. A recente etapa da Fórmula 1 em Portimão fez-me lembrar esses momentos de glória da Ferrari, trazendo consigo a nostalgia de uma infância feliz, mas também uma reflexão inquietante...

 

Recordei aqueles momentos da vida em que me senti no cume da montanha, habitualmente seguidos a um “muito bom” tirado num teste na escola ou uma defesa de nota bem-sucedida numa prova oral na faculdade. São feitos como esses que nos dão força para seguir o nosso caminho sem olhar para trás... mas nada dura para sempre!

 

É verdade. Há momentos na vida em que conduzimos o nosso Ferrari com um prazer dos diabos, a toda a velocidade pela autoestrada deserta rumo a um destino sem fim à vista. Mas inexoravelmente chega-se a um momento em que essa adrenalina, outrora desconcertante e apaixonante, deixa de fazer bater o nosso coração à velocidade do antigamente. E, então, caímos na apatia!

 

É nessas alturas em que damos por nós a pensar: “mas o que é que se passa?” “O que é que mudou?” “Porque é que agora já não me dá aquela pica?”

 

Pois é. A verdade é que por mais conquistas que tenhas alcançado, se continuares a viver delas, se permaneceres a viver nelas, vai chegar o dia em que a glória passada se transformará na apatia do teu presente! E a dúvida instala-se: “será que foi tudo fruto de um acaso?”. “Serei eu mesmo assim tão bom?”

 

Pois é, pois é. Sem gasolina, até o mais potente dos Ferraris é facilmente ultrapassado até pelo trator do velho que nunca saiu da terra.

 

Pois é, pois é. Sem motivação, os circuitos do teu cérebro não vão carburar. A engrenagem do teu círculo de Papez deixa de funcionar e com o tempo vai enferrujar na humidade da glória recordada numa manhã de orvalho.

 

A glória só é boa enquanto o espumante explode da garrafa e apenas serve para nunca esquecermos o quão bom já fomos. É que enquanto o espumante ainda jorra, a verdadeira lenda já está a pensar: “afinal  aonde quero eu ainda chegar?”

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - A amizade em três lições

Passava poucos minutos desde que o relógio havia assinalado as nove da noite quando o telefone tocou. O ecrã anunciava a chamada do meu grande amigo Bruno Castilho. O que será que ele quer?...

Toda a gente sabe que a Covid está de novo a apertar! E com o rebentar da segunda onda desta pandemia, por este mundo e país fora, centenas
e centenas de médicos estão de novo ser recrutados para o combate! E como os noticiários têm vindo a anunciar, internos de especialidades que pouco ou nada têm a ver com o tratamento urgente a estes doentes, foram também chamados para auxiliar nos Cuidados Intensivos...

 

O parâmetro mais importante do ventilador é a capacidade vital. Lição número um. Esse volume é fornecido ao doente de forma constante e no final da expiração o ventilador injeta na árvore pulmonar um volume extra para impedir que as vias respiratórias colapsem. Ora aqui está o motivo da chamada. O meu grande amigo Bruno Castilho tinha sabido das novidades e estava a ligar para me dar conselhos para enfrentar a missão Cuidados Intensivos Covid!

 

Durante o curso de Medicina e no estudo para o exame de acesso à especialidade, obrigatoriamente tive de me debruçar sobre temáticas específicas das doenças cardíacas e respiratórias. No entanto, com o passar dos anos, os conceitos desvanecem e existe sempre um enorme desnível entre o estudar e o praticar. Como tal, esta ajuda vinda de um jovem e promissor interno de Cardiologia afigurava-se preciosa!

 

Para que é que serve a noradrenalina? Para fazer a vasoconstrição e assim aumentar a tensão arterial. E por que é que isso é tão importante na maioria dos doentes internados em Cuidados Intensivos? Porque estão em choque, o que significa que têm as tensões muito baixas. Assim o coração tem de fazer um esforço brutal para manter o débito cardíaco. Precisamente, a noradrenalina vai ajudar muito o coração nessa missão! Foi a lição número dois.

 

Como podem imaginar, bem mais técnicos, detalhados e complexos foram os contornos da nossa conversa... O que verdadeiramente interessa, isso sim, é destacar este enorme gesto de amizade! Do meu grande amigo Bruno Castilho e do meu outro grande amigo que o informou. A nobre partilha de conhecimentos entre colegas sempre foi fundamental para uma boa Medicina praticar. E enfrentar o desconhecido invariavelmente acarreta uma boa dose de ansiedade. Portanto, estarmos “próximos” num tempo em que a pandemia nos obriga a afastar é ainda mais fulcral. Devemos estar separados sim, mas nunca “distantes”! Porque “próximos” somos todos muito mais fortes! Agora e sempre! E esta é a lição número três.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Crónicas em Tempo de Pandemia - Virá aí um novo tsunami pandémico?

Quarentena. Isolamento Social. Estes são dois termos que todo o mundo se habituou a pronunciar neste virar de década.

Fruto de um poder de propagação de que não há memória, a COVID-19 tem votado milhões de famílias e amigos ao afastamento. Pois bem, num mundo que dispõe dum manancial de terapêuticas meticulosamente desenvolvidas em laboratório para as mais variadas maleitas, ironia das ironias, parece que a distância é a única arma para travar o avançar implacável deste vírus.

Dilema. Este é outro dos vocábulos que mais têm cruzado a mente de toda a gente. Não que seja noticiado como a exaustiva e compulsiva atualização diária dos números da pandemia, mas a verdade é que muitos de nós também estão a tentar sobreviver à autêntica turbulência de pensamentos e sensações que tem posto o nosso intelecto à deriva nestes últimos tempos.

Por esta altura, completam-se sete semanas desde a última vez que estive na “minha terra”, Penacova. Nesse fim de semana de 14 e 15 Março, já muito se especulava sobre o que iríamos viver nas semanas que se seguiriam. E o cenário do Estado de Emergência acabou por se confirmar escassos dias mais tarde, começando a vigorar a 18 de Março. Independente disso, as idas a “casa” seriam invariavelmente suspensas por tempo indeterminado. É que como médico tenho de dar o exemplo! Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! O princípio bioético da não-maleficência pela qual todos os médicos e restantes profissionais de saúde se devem reger, diz-nos que devemos evitar a todo o custo fazer mal aos nossos doentes. Como tal, se numa situação normal não estaria afastado mais do que dois fins de semana da “minha terra”, não posso de maneira alguma ignorar o facto dos meus pais estarem numa faixa etária de risco para as tormentas a que têm sido votados por este novo Coronavírus muitos dos adultos de meia idade por esse mundo fora.

Por isso, por mais saboroso que fosse galgar pelo asfalto e romper por entre a floresta só para os abraçar, a verdade é que tal poderia representar um amargo dissabor. E se eu estiver contaminado e não tiver sintomas? E se eles contraírem doença? E se, por azar, até ficam gravemente doentes? Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! É nisto que cada um de nós tem de pensar para conseguir proteger ao máximo os seus. Para todos conseguirmos proteger todos!

Por aqui na Feira, no Hospital de São Sebastião, praticamente dia sim, dia não, se depara com um doente assintomático cujo teste de rastreio da COVID-19 acaba por vir positivo. E por todo o País também tem sido assim. É que nós, médicos, importantes veículos de saúde somos antes de tudo potenciais vetores de infeção. Médicos, Enfermeiros, Assistentes Operacionais e inclusive familiares são, durante todo o ano, fonte de propagação de inúmeras doenças que acabam inevitavelmente por prolongar internamentos e quem sabe, produzir lamentáveis falecimentos… São as chamadas infeções associadas aos cuidados de saúde (IACS), entidades que sempre existiram, mas que agora ganharam dimensão mediática, no advento duma crise de saúde pública e económica sem precedentes.

Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! Desde sempre que nós contribuímos para espalhar infeções. Tantos doentes que fomos ver sem as devidas cautelas! Tanta roupa conspurcada que levamos para casa!

Agora que entramos num período em que se vai assistir ao aliviar do cinto desta austeridade social, mais do que nunca se exige cuidado para não prejudicar aqueles de quem mais gostamos e aqueles de quem nem o nome sabemos! O Estado de Emergência apenas acabou no papel! Ainda mal superamos a primeira onda da pandemia... ainda mal emergimos a cabeça destas águas agitadas... ainda mal expelimos esta água em que quase afogamos os nossos pulmões... já estamos convencidos que podemos virar já as costas ao oceano. Não podemos fazer isso! Se agora cairmos na relaxante armadilha de deixar o corpo boiar ao sabor destas águas perigosa e enganadoramente mais tranquilas, é quase certo que vamos acabar por ser apanhados desprevenidos! É que agora que vamos começar (lentamente?) a nos reaproximar, uma nova vaga da pandemia se perspetiva no horizonte e talvez assim não tão distante quanto hoje se julga. Primum non nocere. Primeiro não prejudicar! Só nós podemos travar este novo tsunami pandémico!

domingo, 12 de abril de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Folar da Páscoa

A Páscoa e o Natal representam grandes oportunidades para regressar a “casa”. E à semelhança da quadra natalícia também a época pascal tem o seu doce tradicional. Assim, o Bolo Rei é por altura destronado pelo Folar da Páscoa, iguaria tradicionalmente oferecida pelo Padrinho ao seu Afilhado. No entanto, ao contrário do doce invernal, o conteúdo desta massa cozida já em plena primavera conhece assinaláveis variações de norte a sul do País. Além do mais convencional Folar de Erva-Doce que desde sempre me habituei a saborear (com ou sem ovos), a faustosa riqueza da gastronomia lusitana exibe um incrível contraste de sabores, desde o salgado e carnudo Folar de Chaves àquele que para mim terá sempre um lugar cativo no coração, o meloso Folar de Olhão.

As mais doces folhas deste cantinho à beira mar plantado eram por mim ainda ignoradas quando iniciei a grande aventura de realizar o primeiro ano de prática médica em Faro. Mas escassos meses mais tarde, por esta altura, já carregava eu a mala do carro com exemplares desse maná olhanense, trazendo escritas nas suas folhas amanteigadas com sabor a canela já muitas estórias do marcante início de carreira numa região tão distinta daquela que me viu crescer.

Este ano, contudo, o cenário é diferente. As pastelarias até continuam a fazer folares e eu até posso voltar a carregar a mala do carro, mas por mais gasóleo que tenha no depósito não posso ir a lado algum! E nem sequer se trata de uma avaria que o carro foi à revisão recentemente e pega sempre que carrego na ignição... O que verdadeiramente não me permite galgar o asfalto rumo a Penacova são as medidas deste Estado de Emergência em que passámos a viver há quase um mês. Estas barreiras erguidas na tentativa de travar o alastrar da pandemia COVID-19 estão a impedir a maioria dos cidadãos de ir passar a Páscoa a “sua casa”. Um mal absolutamente necessário!

O novo Coronavírus não está a afetar apenas os rituais pascais, também muito tem vindo a alterar os nossos hábitos laborais. A natureza do meu ofício até me tem mantido ao trabalho e olhem que até tem sabido bem deslocar-me ao hospital só pelo desanuviar do sisudo branco das paredes de casa. No entanto, à semelhança de muitos portugueses, não tendo sido totalmente cancelada, a verdade é que a minha atividade se encontra severamente modificada! Estágios, cursos e congressos... tudo tem vindo a ser diferido. E quem me conhece bem sabe a “pica” que isso me dava... Aquele adrenérgico despertar de termos o mundo inteiro para conquistar, por agora vai ter de esperar. É que outros valores mais alto se alevantam! A pandemia COVID-19 põe em sério risco a sobrevivência da sociedade mundial tal como a conhecemos. E não são apenas vidas que se têm vindo a perder, é também a nossa maneira de ser que corre o risco de não resistir a esta prolongada estadia nos Cuidados Intensivos.

Por isso, nesta Páscoa temos de ser fortes! Nesta Páscoa temos de ser inteligentes! Em vez de irmos a correr a abraçar os nossos pais, os nossos avós e os nossos padrinhos, façamos antes uso da tecnologia. Peguemos no telemóvel e façamos videochamadas. Porque se queremos que daqui a um ano o nosso Padrinho nos volte a presentear com o saboroso Folar da Páscoa, hoje temos de ser estoicos perante a sedutora tentação daquele sentido e apertado abraçar que uma vida inteira para sempre poderá asfixiar!

sábado, 4 de abril de 2020

Crónicas em Tempos de Pandemia - Eutanásia pandémica

Ai Senhor Doutor, tenho andando tão mal dos ombros e das costas… O meu marido é um santo, ele faz-me tudo... olhe, ele até já me disse: se tu precisares, eu arranjo a eutanásia para ti!

Dias depois do histórico 20 de fevereiro de 2020, no qual o Parlamento aprovou a despenalização da eutanásia em Portugal, uma senhora idosa saíasse com esta tirada na nossa consulta de reabilitação.

E agora, apenas mês e meio decorridos desde essa assinalável data, parece que tudo não passa de um sonho distante... bem distante... Parece mentira! Ainda há coisa de 2 meses andávamos nós a discutir a descriminalização da eutanásia e agora andamos todos a falar de infeções víricas! Ainda há coisa de 2 meses andávamos nós a discutir a morte e agora andamos todos a lutar pela vida!

As névoas destas 6 semanas que já passaram (parece mais que foram 6 anos!) quase fazem esquecer, mas ainda me recordo da grande celeuma que o debate motivou no Parlamento. A discussão não só azedou nos prós e contras da morte medicamente assistida, como também houve alarido aquando da deliberação em submeter ou não o delicado tema a referendo. A verdade é que a decisão acabou por não ser alargada à população, como havia sucedido no caso do aborto até à décima semana de gravidez em 2007, e o único passo que neste momento impede a eutanásia de ter lugar legalmente em Portugal é o crivo do Presidente da República. Pois é, esta que constituía provavelmente a última “batata quente” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, acabou por ficar esquecida no forno, graças a um vírus em forma de coroa que não avisou ninguém de que vinha para jantar.

É irónico, não é? Nem tempo houve para os jornais serem inundados com reportagens de médicos que iriam alegar objeção de consciência para se recusar a cometer tal ato. E o País nem sequer chegou a conhecer o primeiro doente a beneficiar da eutanásia… E será que ele ainda continua vivo?

Tal como a doente que veio à nossa consulta, também muitas pessoas (e muitos deputados) revelavam algum desconhecimento sobre os reais pressupostos desta “solução final”. A ideia que transparecia diariamente nos noticiários e conversas de café (ai que saudades de uma boa conversa de café...) era que a sociedade portuguesa arranjara uma forma legal de despachar todos os incómodos velhos que enchem hospitais, lares e unidades de cuidados continuados. Pois desengane-se quem assim pensa, que a eutanásia disso não se trata! Não sei se sabem, mas só doentes muito bem selecionados, face à irreversibilidade da sua condição clínica entre outros critérios apertados, podem, de facto, requerer a morte medicamente assistida.

Portanto que se saiba, o Coronavírus, apesar de já ter invadido em força lares de idosos de norte a sul e vitimado mais de duas centenas de portugueses, ainda não terá visitado os verdadeiros e reais candidatos à eutanásia. Mas isso agora não interessa nada! O que importa agora é arranjar Equipamentos de Proteção Individual (Senhor Primeiro-Ministro, eles estão mesmo em falta!). O que importa agora é lutar para que Ramalho Eanes não tenha de ceder o ventilador ao jovem que estará a seu lado! O que importa agora é ficarmos em casa! O que importa agora é travar esta pandemia!

E depois, quando tudo isto acalmar e voltarmos a ter pachorra para discutir apaixonadamente a morte em vez de cuidar desenfreadamente da vida, o nosso Presidente lá terá de ir buscar ao forno o tal assado. Cuidados Paliativos, Eutanásia... O debate até pode já estar queimado, mas ainda há de ter sobrado alguma batata para nós trincarmos!

sábado, 14 de março de 2020

As lágrimas da quarentena

Há 100 anos atrás, o mundo saído da Primeira Grande Guerra debatia-se com a emergência da Gripe Espanhola, doença que vitimou 5-10% dos 500 milhões de pessoas que foram afetados por todo o mundo. Já a nossa geração teve a sorte de apenas experienciar uma pequena amostra da capacidade pandémica destes vírus Influenza H1N1 quando, em 2009, teve de enfrentar a Gripe Suína. A tal que nos pôs a todos a desinfetar as mãos com soluções alcoólicas e a acorrer às farmácias em busca de Tamiflu®.

Agora, 100 anos mais tarde, a nossa geração está perante um grande desafio. A luta é contra um Coronavirus, microrganismo que se tornou rei num mundo dominado pela pandemia das doenças não-comunicáveis. A obesidade e a diabetes eram globalmente os principais desafios de Saúde Pública até Dezembro de 2019. Mas agora isso pouco importa. Comprem bolos, chocolates ou até refrigerantes... Isso agora pode esperar. O mais importante é que se abasteçam e se fechem em casa!

É isso mesmo. Stay the fuck homeFiquem em casa! É este o nome do movimento lançado pelo  jovem empresário de Frankfurt Florian Reifschneider para chamar à atenção da importância de todos (todos mesmo!) respeitarem a quarentena social voluntária que poderá conter a disseminação da doença COVID-19.

Home. Lar. Estas últimas semanas não têm sido nada fáceis. Se por um lado como médico tenho de aplaudir as medidas extremas tomadas para tentar travar esta nova infeção, por outro, como ser humano que possui um coração sensível às catecolaminas da emoção, não posso ficar indiferente à tristeza que este isolamento social está a votar as nossas famílias.

Não o posso ignorar. Não posso ficar indiferente quando vejo uma filha chorar pelas saudades que tem da sua mãe. Saudades motivadas pela recusa em vê-la na nobre esperança de a poupar a uma possível doença que nem sabe sequer se é ou não portadora.

Enfim, começo seriamente a temer que este novo Coronavirus não nos vai apenas vitimar de dificuldade respiratória. Esta COVID-19 também nos vai fazer sucumbir de asfixia mental! Temo não só pela saúde física dos afetados, mas sinceramente o que me preocupa ainda mais é a emergência de comportamentos discriminatórios para com os outros. Encerrem-se as fronteiras físicas, não as fronteiras psicológicas!

Bem, nós cá por casa já deixamos de visitar os meus avós. O almoço de domingo na casa de uns e o jantar na casa dos outros está suspenso! E não foi apenas agora que o próprio Governo assim decretou. Foi já no fim de semana anterior que tomamos esta decisão. Afinal, tratam-se de idosos, já com as suas doenças crónicas, enfim o terreno propício para a letalidade de uma qualquer infeção respiratória mais complicada. Só que esta COVID-19 tem o condão de se espalhar mais que as enfermidades que já ganharam o rótulo de sazonais. E quanto mais se propagar, mais pessoas poderá matar! É por isso que vejo com muito bons olhos as novas medidas de contenção tomadas esta 5.ªfeira. Só que estas têm um custo... E esse custo é a tristeza! No outro dia ainda vi o meu avô, mas foi através dos quadradinhos de uma janela. Parecia que estávamos ambos presos. Um fechado no interior de casa. O outro preso cá fora, onde os vírus andam à solta. E eu que ando no meio da pior da bicharada todo o ano, tenho de ser ainda mais responsável!

E a responsabilidade não é só minha, é de todos nós! TODOS NÓS!

Por mais que me custe (e se custa!) ver a minha mãe chorar por ter saudades da minha avó, quando esta ainda está viva, ela própria tem consciência que esta é uma medida a pensar no bem-estar da minha avó, da avó do meu amigo Bruno e da avó do doente que na 2.ªf vou ter à minha frente.

Por isso: STAY THE FUCK HOME! FIQUEM EM CASA!
Vamos lá controlar isto depressa para podermos todos (TODOS!) voltar a ser felizes!

sexta-feira, 6 de março de 2020

Aquele eterno frenesim

E agora o que é que eu vou fazer? Quando o bilhete de identidade diz ter chegado a hora da Reforma, alguns malucos chegam a desesperar por não se imaginarem a fazer outra coisa que não o ofício de sempre. Porventura, o arquétipo desta paixão será o falecido cineasta Manoel de Oliveira, que apenas deixou a realização quando faleceu aos 106 anos de idade! Na área da Medicina recordo os exemplos dos enormes Gentil Martins e Linhares Furtado, cirurgiões que ficaram ligados a dois feitos assinaláveis em Portugal: o primeiro liderou a primeira separação de gémeos siameses portugueses, o segundo conduziu o primeiro transplante renal em terras lusas. E ambos continuaram a sua atividade bem para lá da hora em que as mãos já lhes começavam a tremer, nessa altura “apenas” dando consultas. No nosso município, temos outro caso, o do obstetra Artur Coimbra, que, depois de ter trazido muitas crianças para fora da barriga das mães de Penacova, por cá continua a dar consultas. 

Todos estes exemplos são mais ou menos famosos aos olhos do grande público. No entanto, há outros casos de eterna paixão pelo ofício que, tendo passado anónimos ao escrutínio mediático, merecem o devido reconhecimento daqueles que tiveram o privilégio de os testemunhar. A propósito disso, há cerca de um mês atrás, teve lugar um dos maiores tumultos a que a minha terra natal assistiu nos seus largos séculos de existência. Nunca antes por cá tinha visto tamanho corrupio de gente nem semelhante desfile de viaturas como no funeral do Sr. Alberto “Chupinhas”!

A grande maioria dos penacovenses decerto se recordará desta ilustre figura do Terreiro de Penacova. Taxista há larga dezena de anos, Alberto “Chupinhas” prolongou a sua atividade até à bonita idade de 88 anos! Até a “doença prolongada”, termo que os jornalistas costumam empregar para designar a enfermidade genericamente conhecida como “cancro”, o obrigar a reformar de vez em novembro de 2019, o dono do Táxi “Chupinhas” todos os dias bem cedo se levantava para correr a estacionar na Praça pelas 8 da manhã. Não é para todos! O homem era conhecido pela cautela com que dirigia a sua viatura, o que, se por vezes irritava os apressados que se viam obrigados a marcar passo atrás do taxista, na verdade lhe garantiu uma carreira sem acidentes dignos de registo! É obra! Sobretudo para quem percorreu o país de lés a lés ao volante do seu táxi!

Alberto, mas eu não te disse para desligares o telemóvel!!!, foi a frase enfurecida que nos habituámos a ouvir da boca da sua esposa quando o telemóvel lá teimava em interromper um qualquer almoço de família e fazia o homem abalar a todo o gás rumo a mais um serviço. Fosse para Trás-os-Montes ou para o Algarve, de manhã cedo ou pela noite dentro, os serviços de táxi eram a única coisa que faziam largar o tacho a este homem que sempre foi um bom garfo. Até bom demais! E quando muitos se mostravam melindrados por ver o Ti Alberto “Chupinhas” abandonar a meio uma Festa da Ponte, eu, por outro lado, sempre vi nisto algo de incrivelmente fascinante! É que ver um homem de 70 e tal anos, de 80 e tal anos, levantar-se assim todo apressado, qual médico chamado para atender a uma emergência, sempre constitui para mim algo de verdadeiramente assombroso!

Deixem andar o homem!, era o que eu dizia. É que, afinal, enquanto ele andar, é uma alegria! E foi uma imensa felicidade vê-lo neste incrível frenesim quase até ao dia em que a água lhe benzeu o rosto na hora da despedida. Nesse dia, por entre lágrimas, contaram-se estórias, como aquelas vezes em que o compadre Alberto no seu trajeto para casa largava um cliente e nada lhe cobrava por precisamente... lhe vir em caminho.

E só agora, passado pouco mais de um mês do dia em que ajudei a carregar o caixão do falecido “Chupinhas”, é que me apercebo do quão parecido sou eu com este taxista que Deus me deu a conhecer como avô.

Aquele seu frenesim quando recebia um serviço, o modo precipitado como largava tudo para trás para ir abraçar a sua grande paixão, conduzir, faz-me agora recordar das vezes em que eu próprio corro a me alhear de tudo, magicamente encerrado no mundo do meu escritório. Fechado no mundo dos estudos, libertado no universo da escrita... Sem sábados, domingos ou feriados, desde o passado da escola até ao presente da profissão. Raramente por obrigação, quase sempre por paixão!

Amanhã falamos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

E a Primária já foi há 20 anos! – Parte 2

“Não me obriguem a zangar-me com vocês logo no primeiro dia!”

Foi a recordação melancólica do primeiro raspanete coletivo com que foram presenteados duas dezenas de infantes naquele setembro de 1999 que me levaram a eternizar estas memórias. No entanto, não se pense os tempos de Primária se resumiram às punições e ao clima de medo! Que não se pense que o ensino old school (literalmente) era todo ele mau. Não, antes pelo contrário! É que cá em Penacova tivemos a oportunidade de nos desenvolvermos não só no campo intelectual, mas também a nível físico... e a céu aberto!

Fora do ambiente aprisionante a que os “Mega Agrupamentos” votaram as antigas escolas Primárias, os nossos 30 minutos do Intervalo Grande eram quase sempre passados num enorme retângulo de cimento com 2 balizas e linhas brancas a caiar o terreno de jogo. Muitos duelos históricos tiveram lugar nesse recinto. Os clássicos “terceira contra quarta” ou “avançados contra defesas” anunciados pelo imberbe cuja voz mais alto emergia do túnel formado pelas mãos juntas em concha à saída da boca. E as raparigas não eram excluídas! Ainda me recordo de algumas craques que deixavam muitos moços para trás, com os olhos pregados no chão à procura dos rins, como o Vítor Baptista um dia buscou o tal brinco (embora para eles, naquela altura, rins não passariam provavelmente dos bolos calóricos que tínhamos o prazer de comer religiosamente uma vez por semana, às quartas-feiras se não a memória não me atraiçoa).

E nas imediações desse campo de jogos, para lá de uma das balizas, encontrava-se igualmente mais um marco da Natureza, um sóbrio pinhal que acabava por separar os dois blocos escolares que compunham a antiga Escola Primária de Penacova e constituíam gigantes testemunhas das sucessivas gerações que por lá passaram. Aproveitando o intervalo mais prolongado proporcionado pela hora de almoço, não raras vezes explorávamos o mistério escondido por entre a penumbra dessas árvores, enquanto as mesmas resistiram à fúria mecânica das motosserras que um dia as derrubaram.

Tivemos também a oportunidade de participar ativamente numa das grandes celebrações cujo passar dos anos tem vindo a matar, verdadeira e irónica metáfora, não fosse de “queimar o Entrudo” aquilo a que me refiro.

Além disso, numa altura em a tecnologia ainda não havia assumido total controlo do dia-a-dia, como um simbionte que se ia apoderando da outra espécie, tivemos a chance de aprender a manejar um computador de secretária e inclusive de construir um site na Internet. E não, não precisamos de ir a Lisboa para fazer isso!

Não há como esconde-lo. Muitos dos métodos de ensino da antiga Primária estão hoje ultrapassados. O mundo mudou, as pessoas mudaram. A realidade é já definitivamente tecnológica e não podemos ficar para trás. As crianças nascem agora com um tablet nas mãos tal como eu nasci com o rato do computador de secretária numa mão, mas ainda com o livro na outra...

Tudo tem a sua beleza, mas para mim nada mais belo há que a memória daquele parque de estacionamento onde o meu avô, o meu pai e eu aprendemos e brincámos...

domingo, 9 de fevereiro de 2020

E a Primária já foi há 20 anos! – Parte 1

“Não me obriguem a zangar-me com vocês logo no primeiro dia!”

Todos nós temos uma recordação do primeiro dia de escola. Esteja ela ainda viva como a sensação de novidade que uma criança traz para casa quando aprende pela primeira vez a dizer o alfabeto de trás para a frente ou já mais apagada como as páginas gastas de uma sebenta tantas vezes folheada, todos nós temos um evento que lembramos desse dia único.

“Não me obriguem a zangar-me com vocês logo no primeiro dia!”

Há anos esta frase me vem à cabeça. A sua Autora, infelizmente, já partiu. Tendo falecido andava eu ainda no 5.º ano, a Senhora Professora não poderá esclarecer as circunstâncias que A levaram a ameaçar a turma naquela manhã de setembro de 1999... mas com certeza que deve ter sido por algum frenesim coletivo, vulgo barulho, que, entretanto, se instalara. O que é certo é que todos ficamos em sentido! Todos ficamos a perceber, em escassos minutos, que a Senhora Professora Natália era uma mulher que impunha respeito... mas também muito medo!

A propósito desses 20 anos que já passaram, recordava com alguns dos presentes nesse dia, amigos para a vida, outros episódios que ajudaram a sedimentar o fóssil educativo que aqueles que passaram pela Escola Maria Máxima na viragem do século puderem ainda vivenciar. Era um ensino “à antiga”. Uma educação baseada na repressão verbal e física. Na tabuada dos 8, 8x7 ou era igual a 56 ou a um valente puxão de orelhas! Se fizéssemos muito barulho, o castigo seria escrever 100 vezes em casa “Não vou fazer mais barulho nas aulas”. E se viéssemos com as sapatilhas ou sapatos sujos do recreio, o que perigosamente sucedia em dias de chuva em que teimávamos em dar uns toques na bola, habilitávamo-nos a levar uma valente reprimenda caso o calçado não passasse na inspeção obrigatória antes do regresso à sala de aula!

Tendo sido sempre dos mais bem-comportados, aquilo a que chamamos um “santo”, alturas houve em que inevitavelmente “caí do altar”. Talvez a mais marcante de todas seja uma que demonstra bem o poder da Autoridade que dominava e governava todo o ambiente da sala de aula. Tão asfixiante chegava a ser tal Presença que ainda hoje julgo que até os raios de sol pediam licença para entrar antes de timidamente se imiscuírem através da transparência das vidraças da sala. Bem, não dispersando como fazem os raios de luz ao atravessar a interface entre dois meios diferentes, existia, então, numa mesinha junto à parede dessas vidraças uma buzina em forma de corneta. Na ausência da Senhora Professora, já tinha visto um ou outro colega ir lá apertar a pera da buzina, fazendo emitir um som característico que ecoava pela sala inteira. A imagem daquela buzina, ali tão placidamente pousada na vertical, com a boca da corneta a beijar o tampo da mesa velha como as ventosas da lampreia se colam à parede de um tanque, fazia crescer em mim a vontade entrópica de ir lá tocar. E num momento da aula em que andávamos a fazer trabalhos em grupo e a Senhora Professora estava de pé a tirar dúvidas a uma aluna, não consegui aguentar mais e a serpente disfarçada de inquietude de petiz me fez ser Adão e apertar o fruto proibido. O som não saiu forte à primeira, pelo que, insatisfeito, fiz uma segunda tentativa. Desta feita, o gritante ressoar da pera sufocada no interior da minha mão direita cerrada com toda a força, ao alcançar os ouvidos da Senhora Professora, de imediato Lhe retirou a atenção do caderno que a aluna mostrava, fazendo-A automaticamente elevar o rosto em direção à fonte daquele barulho que tão bem conhecia. E de forma tão instantânea como a luz surge de uma lâmpada quando ativamos o interruptor, a expressão da Senhora Professora ganhou aquele tom carregado e fechado, com o brilho a sair-Lhe dos olhos como flechas flamejantes e um inclinar de cabeça que significaria um valente par de estalos caso este infante não estivesse protegido por duas ou três secretárias de distância, que nessa hora constituíram muralhas mais altas do que as da China!

Era este o poder da Saudosa Senhora Professora Natália!

Era este ensino o autêntico fóssil vivo numa sociedade que já começava a dar sinais de retirar autoridade e prestígio aos docentes.

Era esta forma de aprender a última folha dos modelos educativos que vigoraram durante séculos... a derradeira linha das lições que o meu avô e o meu pai tiveram, na mesma escola, sentados com os cadernos pousados nas mesmas carteiras que naquele dia me protegeram de um valente par de estalos.